17.5.08

Cavalos de fogo

Observo a conjuntura mundial, a alta do preço dos alimentos, a fissura dos governantes teimando em abastecer veículos e não bocas, enfim, o cruel manuseio do poder, e este aberrante paradoxo: a ONU clama por US$ 2 bilhões para socorrer as vítimas da fome (854 milhões de pessoas), enquanto os EUA gastam na invasão do Iraque meio trilhão do dólares, segundo relatório do Serviço de Investigação do Congresso (CRS, sigla em inglês).

Recordo-me da queda de Faetonte, personagem de uma das narrativas paradigmáticas da mitologia grega. Filho do Sol, o jovem Faetonte, tomado pela inquietação própria à idade, viu-se desafiado a provar sua ascendência divina e dirigir o carro do pai.

Ao apresentar-se no palácio de Hélio, Faetonte aproximou-se do trono onde o deus-sol reinava cercado de seu séqüito: o Dia, o Mês, o Ano, o Século e as Horas. Em volta, a Primavera com a sua coroa de flores; o Verão coberto de espigas de cereais; o Outono com sua cornucópia repleta de uvas; e o Inverno com seus cabelos brancos como a neve.

Faetonte exigiu do pai uma prova de amor. Hélio prometeu atender-lhe tão logo manifestasse um pedido. Logo se arrependeu ao ouvir o filho expressar o desejo de trazer em mãos as rédeas do carro guiado por quatro cavalos incandescentes que expeliam labaredas e, graças aos ventos, disseminavam a luz e o dia por toda a Terra.

Hélio julgou absurdo o pedido do filho. Como confiar a um jovem imaturo o carro capaz de impedir o mundo de viver mergulhado nas trevas? Retrucou-lhe:

- Ó, filho, quisera eu poder voltar atrás em minha promessa! Pede-me algo que está além de suas forças. Você é jovem e mortal; almeja mais do que outros deuses são capazes de obter. Nenhum deles logra equilibrar-se sobre o eixo incandescente. Íngreme é o caminho de minha carruagem, só com muito esforço meus cavalos, ao amanhecer, conseguem galgá-lo. O meio do caminho é alto, no centro do Céu. E no final o caminho declina abruptamente, exige uma condução segura, para que não mergulhe o carro nas profundezas do mar. Lembre-se de que o Céu se move num ímpeto constante, e é preciso viajar em sentido contrário a esse movimento. Como você haveria de conseguir isso? Volte atrás em seu pedido. Peça o que quiser, todas as riquezas do Céu e a da Terra, menos isso.

O rapaz não arredou pé, convencido de que seria capaz de dissipar as trevas que encobrem o mundo. Ao ver que a Aurora já se aproximava para inaugurar um novo dia, Hélio concordou que o filho o acompanhasse na carruagem. Faetonte, entretanto, insistiu em guiá-la sozinho. Um das Horas, nervosa, alertou o deus solar:

- Hélio, é hora de atrelarmos os corcéis de fogo ao carro. Veja, a Aurora já está a caminho. Urge que seu carro flamejante siga atrás. Como todo pai fraco de caráter, o rei abriu mão de seus princípios para não contrariar o filho. Frente à insistência do jovem, cedeu ao coração em detrimento da razão.

Faetonte subiu no carro e conduziu os cavalos a galope pela linha etérea que os manteria eqüidistantes da Terra e do Céu, de modo a não incendiar as moradas dos homens e dos deuses. Rédeas nas mãos, sentiu-se senhor do mundo, cuja luz provinha de seu carro flamejante. Contudo, o brilho das labaredas turvaram-lhe os olhos e a mente. Não conseguiu manter o equilíbrio da carruagem. Os cavalos puxavam mais que a força de suas mãos. Desabalados, mergulharam em direção à Terra. Ao passar por montanhas cobertas de neve, o calor do carro as derreteu, o bafo dos animais incendiou cidades e calcinou países, fez arder florestas, secar os rios e os mares.

Zeus, indignado, atirou um de seus raios e despedaçou o carro, dispersando os cavalos. O corpo de Faetonte, com os cabelos em chamas, caiu como uma estrela cadente. As náiades o depositaram num túmulo, em cuja lápide gravaram este epitáfio: “Aqui jaz Faetonte. Na carruagem de Hélio ele correu; e se muito fracassou, muito mais se atreveu”.

O pecado de Adão e Eva consistiu em comer o fruto do conhecimento do Bem e do Mal – quiseram equiparar-se a Deus. Só Ele sabe discernir com nitidez esses dois pólos, e é a adequação de nossa vontade à Dele que nos permite fazer a “Sua vontade assim na Terra como no Céu.” Fora disso, somos conduzidos, às cegas, pelos cavalos de fogo de nossas atrevidas pretensões. Com grave prejuízo aos nossos semelhantes e à Mãe-Terra.

Frei Betto é escritor, autor de Sinfonia Universal – a cosmovisão de Teilhard de Chardin (Ática), entre outros livros.

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2 comentários:

Odele Souza disse...

Olá Pavarini,

Um texto excelente este do Frei Beto e que a exemplo de outros publicados aqui, faz com que a visita ao seu blog seja sempre um prazer.

Um abraço e bom fim de semana.

PS.Obrigada por manter o link do blog de Flavia.

Éverton Vidal Azevedo disse...

Ótimo texto! Quantas contradi}oes há debaixo do céu...

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