22.6.08

Sou um homem de muitas mulheres

Eu sou um homem de muitas mulheres - mas uma só esposa. Alto lá, moralistas de plantão: nada de amantes, concubinas e, bem, os termos são muitos e cada um mais torto do que o outro. Falo de outro tipo de mulherenguice, substantivo que inventei pra descrever, como diria o Aurélio "o ato ou o efeito de ser mulherengo". Estou mais para a mulherenguice de Chico Buarque, que canta e se encanta com a poética feminina, com o eu-lírico das mulheres, do que com a mulherenguice de Salomão.

Pronto! Vão dizer e comentar que defendo supostas relações adúlteras - reais ou platônicas. Nada mais falso. Sou um homem fiel. Mas amo muitas mulheres... Elisabeth Bishop, considerada um das mais importantes poetas do século XX a escrever na língua inglesa. Cecília Meireles, lírica linda, palavra mais ainda, Cecília, que, assim como eu, alguém (também) vivendo entre e as vocações da poesia e da educação.

Mas sobretudo, antes de todas essa mulheres-poetas, Adélia Prado, como a chamou Drummond, "Adélia lírica, bíblica, existencial!"Adélia, que me fez silenciar monasticamente quando ouvi:
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Paixão
De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos, não é a bola bonita caminhando
solta no espaço.
(Poesia Reunida, p.199.)

Ausência de poesia
Aquele que me fez me tirou da abastança,
Há quarenta dias me oprime do deserto. (...)
Ó Deus de Bilac, Abraão e Jacó,
Esta hora cruel não passa?
Me tira desta areia, ó Espírito,
Redime estas palavras do seu pó.
(Poesia Reunida, p.189.)

Adélia, que me fez chorar um choro que eu já não sabia chorar quando li:
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Orfandade
Meu Deus,me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
meu pai.
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Eu sei que Paulo (1Co 14.20) nos mandou crescer, "pensar como adultos, mas ter a capacidade de não ser malicioso - exatamente como as crianças" e Jesus (Lc 18.17) nos recomendou "receber o Reino como crianças". O poema de Adélia me faz pensar em tudo isso, equilibrar as coisas, mesmo sendo tão curto e sem as pretensões da discussão teológica ou filosófica. Ah, Adélia, eu te amo!

Adélia, que me me resolve a crise de ser pastor e ser poeta e ser educador ao pregar:
Teodoro falou uma coisa alinhada de perfeita: 'a vocação é um afeto'."
(Manuscritos de Felipa, p.104.)

Adélia, que começou tarde - o primeiro livro foi aos 40 anos, que graduou-se em Filosofia e foi professora, mas desistiu de tudo isso pra criar e educar os cinco filhos! Eis um refrão: Adélia, eu te amo! E você era e é Adélia - nunca foste Amélia!
Adélia, que me fez quase dizer Aleluia!, ao responder uma crítica de "obra missionária, por falar tanto do seu (amor a) Deus nos poemas e livros que escreve:
O registro religioso numa obra mexe com as pessoas num lugar não literário e pode provocar repulsa ou facilitar a aceitação do texto, assunto para a psicologia e não para a crítica literária (...) è impossível Deus não estar em mim, existir sem conexão nenhuma com Ele é ser um absoluto, e como não somos... a fé cristã me constitui (...) Pertenço à tribo de autores cristãos como Murilo Mendes, Gerard Manley Hopkins (nota minha: grande influência de Eugene Peterson, nosso bem conhecido pastor e poeta presbiteriano) e Cronin."
(O Estado de S.Paulo, 5 de dezembro de 2005)

Adélia, que me dá lições sobre como falar com o coração mais do que com a lógica e a cabeça (e olha que os nossos teólogos precisam ouvir isso):

A formalística
O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
(Poesia Reunida, p.376)

Adélia, prima-irmã do Salmista, meio-parente de Jó, sabe muito bem lamentar, orar a oração do que está triste ou desanimado na Alma (Sl 42 e 43 ), a buscar deseperadamente direção espiritual:
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O poeta ficou cansado
Pois não quero mais ser Teu arauto.
Já que todos têm voz,
por que só eu devo tomar navios
de rota que não escolhi?
Por que não gritas, Tu mesmo,
a miraculosa trama dos teares,
já que Tua voz reboa
nos quatro cantos do mundo?
Tudo progrediu na terra
e insistes em caixeiros-viajantes
de porta em porta, a cavalo!
Ó Deus,
me deixa trabalhar na cozinha.
(Oráculos..., p.13.)

Adélia é uma tutora da minha (pequena) obra. Penso nela quando escrevo, a invejo quando componho canções, invejo o eco musical de seus poemas, sua moda concisa e bíblica de cantar.
Quem conhecer Adélia, também a amará. Adélia é pastora - o seu rebanho são palavras. Sua congregação são poemas.
Amém!

Gerson Borges, no site Cristianismo criativo.

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