14.6.08

Vida de gado

COM ALGUMA insistência, voltou-se a discutir nos últimos tempos a conceituação de direita e esquerda.

Políticos, empresários, artistas, cantores, jogadores de futebol, dirigentes sindicais, bispos, padres e freiras, animadores de auditório e guitarristas das bandas funk -enfim, o imenso e monótono gado de homens e mulheres está sendo contado, pesado e dividido entre os dois conceitos nascidos na Convenção Francesa, dois séculos atrás.

Em matéria de novidade, não podia ser mais velha. Leio nas folhas que fulano é de direita porque gravou um sambão, enquanto sicrano é esquerda porque fez pesquisas a respeito de um tamborim sem pele de gato e sem pele alguma.

Bem, em determinado momento do século passado, os Beatles foram corifeus máximos da esquerda, o "nec plus ultra" em matéria de progresso por que, entre outras coisas -reza a lenda- fumaram maconha no banheiro da rainha da Inglaterra.

Ora, a própria rainha faz coisas bem mais necessárias em seu próprio banheiro e no entanto é um ícone da direita e do conservadorismo. Ditos Beatles, por sinal, têm hoje suas músicas tocadas no salão da Confeitaria Colombo, aqui no Rio, aí pelas cinco horas da tarde, por uma orquestra que parece ter saído dos salões do Titanic e que ficou tocando hinos religiosos durante o naufrágio.

Velhinhas mastigando torradas e tomando chá consomem placidamente aqueles acordes feitos para contestar os valores da sociedade, o toque de reunir da moçada que devia tomar o poder para dar ao mundo mais justiça e beleza.

O mundo não ficou mais belo nem mais justo -e as velhinhas continuam mastigando torradas, os violinos da Colombo soluçam os antigos temas da revolta dos Beatles e o Titanic há muito caiu no buraco. Vai ver que o Titanic era de direita, o chá da Colombo é direitíssimo e as velhinhas -bem, as velhas são apenas velhas.

A mania de colar rótulos de direita e esquerda começou nos bares da zona sul carioca, o pessoal sem tempo nem de ler os suplementos dominicais e os segundos cadernos da vida, mas precisando estar por dentro das coisas e fatos: daí a necessidade dos rótulos, para se saber o que é e o que não é, do que está ou não está na hora, quem é bacana ou brega.

Essa mania de rotular espraiou-se e condensou-se nas duas palavras mágicas que vieram de dois séculos atrás. Roberto Carlos é direita; Paulo Coelho é direita; outro Paulo, o Maluf, é direitíssima.

Agora o outro lado: um cidadão que arriou a calça e a cueca -não tenho certeza se arriou também a cueca, usar cueca parece que é coisa da direita- é da esquerda, porque o traseiro, em vez de ser um peça posterior da anatomia humana, passou a ser uma expressão ideológica em determinadas circunstâncias.

Um teórico desses babados poderia explicar que direita é atributo (ou fosso) dos conservadores, enquanto a esquerda é atributo (ou pedestal) dos liberais progressistas.

Assisti outro dia a um balé do teatro Bolshoi, nos tempos ainda revolucionários da finada União Soviética. Nada mais conservador do que a arte no país da Revolução. Já o antigo programa do também finado Chacrinha Barbosa funcionava esplendidamente como manifestação popular das forças progressistas.

Torcer pelo Obama, não sei ainda por que, é esquerda no duro, embora em linhas gerais, democratas e republicanos nos Estados Unidos sejam dois lados de uma moeda.

O desmatamento de nossas florestas é uma ação estratégica da direita mais radical.

Até mesmo o ato de fumar parece que virou um gesto ideológico, como aconteceu com as barbas bravias dos tempos dourados do PT. Daí que o governo petista, esquecido de suas origens contestatórias, vai gradativamente proibindo que se fume, por ora em ambientes fechados, como o banheiro da rainha da Inglaterra que foi violado pelos antigos rapazes de Liverpool, que não apenas fumaram em tão sagrado recinto, mas fumaram maconha, tornando dupla a contestação.

O melhor é ficar acima da disputa para saber quem é isso ou aquilo. Sempre haverá bois e vacas pastando à direita ou à esquerda. Continuarão bois e vacas ainda que penetrem no banheiro da rainha e façam alguma besteira.

Carlos Heitor Cony, na Folha de S.Paulo.

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