27.7.08

Deus no graveto dos poetas

Que Deus graciosamente se deixa navegar na textura das palavras é algo que nossa milenar civilização do livro dá testemunho vivo. Que Ele navega de tal modo que todos os seus misteriosos aspectos podem ser encerrados em um sistema racional e objetivo é algo a que a arrogância moderna se apegará insensatamente.

Arquitetaram uma faustosa nau onde Deus navegaria e se ofereceria integralmente a todos os homens que acatassem de bom grado a suficiência da embarcação. Desde então surgiram tantas embarcações quantas são as vaidades humanas. Desde então confundem Deus com os ofuscantes ídolos que trafegam na frota de engenhocas.

O Poeta Maior, no mesmo vertiginoso instante em que se recusa a ingressar em imponentes navios aceita abrigar-se em frágeis gravetos trançados artesanalmente por poetas menores. A linguagem da poesia é suficientemente leve para conter Deus e suficientemente despretensiosa para não contê-lo inteiramente.

Borges esclarece que na fantástica Tlön é reduzidíssimo o espaço dos substantivos. Seu lugar é ocupado ora por “verbos impessoais qualificados por sufixos (ou prefixos) monossilábicos de valor adverbial” ora por adjetivos monossilábicos. Em alguma esquina daquele reino poético batizaram o rio de “duradouro-fluir”. É evidente que o termo – de um vigor literário manifesto – é duradouro apenas em nossa memória, jamais em Tlön, onde a linguagem é tão perene quanto o rio que ela pretende nomear.

Se o poeta pode se permitir uma lasca de arrogância, como fazia o italiano Tasso ao afirmar “Non merita nome di creatore, se non Iddio ed il Poeta.” [Ninguém merece ser chamado criador, senão Deus e o poeta.”] sua poesia jamais poderá invocar legitimamente o vaidoso estado de derradeira criação. Também aqui a poesia se torna um lugar ideal para que o Misterioso se revele: não de uma única e definitiva vez, mas em vagaroso e admirável processo. Menos uma perpétua revelação substantiva – como a que nos oferece determinado teólogo – que uma inacabada revelação adjetiva-verbal – como a ofertada pela confraria dos poetas, espalhados no tempo e no espaço.

O Mistério desliza no duradouro-fluir da revelação, em um graveto leve e despretensioso, democrático e inacabado: a poesia.

Alysson Amorim, no blog Amarelo Fosco.

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