Quando eu vi o sujeito pegar a picanha crua e fatia-la, invocando “a escola argentina”, apertei o braço da Julia e disse, baixinho: “vamos embora”. Segundo os mandamentos sagrados do churrasco, que recebi de meu pai, meu pai recebeu do pai dele e o pai dele do pai do pai dele, a integridade da picanha era um dogma e, como todo dogma, absoluto e inviolável.
Erram os que crêem que, se Deus está morto, tudo é permitido. Muito pelo contrário. Num mundo dessacralizado, a gente tem que se agarrar ao nosso quinhãozinho de absoluto. Eu acreditava na ortodoxia do churrasco: picanha você grelha inteira, longe da brasa, só com sal grosso - “sal moura é coisa de bárbaros”, também dizia papai, “quem faz isso deve pedir perdão, em público, ou ser banido da cidade”.
Eram esses e mais dois ou três preceitos simples que, se não garantiriam nossa entrada no céu, ao menos aplacavam um pouco a angústia de nos sabermos finitos e confusos, num universo gigante e que se expande, a despeito de nossos medos, sonhos ou opiniões sobre a taxa de juros do COPOM.
Viver é impreciso, pensava eu, mas grelhar, felizmente, era preciso - até aquele churrasco. Pois quando o sujeito serviu os bifes de picanha, meu mundo ruiu. Estavam melhores do que a peça inteira, que minha família vinha assando, desde a aurora dos tempos.
Foi um momento de crise, confesso, mas não perdi a cabeça. Talvez nós estivéssemos errados, pensei, com uma humildade que me encheu de orgulho. Talvez o Deus deles fosse mais poderoso que o nosso. Respirei fundo, comi mais um pedaço e fui conversar com o churrasqueiro. Saí de lá com o rabo entre as pernas, a barriga cheia e o livro “Churrasco Patagônico” embaixo do braço.
Por alguns dias estudei o compêndio, com a volúpia de quem folheia uma obra subversiva. Refleti bastante. Ponderei. Tive sonhos intranqüilos e suores noturnos, mas ao fim da leitura, tive de dar o braço a torcer: os argentinos estavam certos.
Ainda não tive coragem de informar meu pai, mas no próximo fim de semana fatiarei uma picanha. Os bifes, grossos, colocados bem perto da brasa, só serão salgados depois de “selados” dos dois lados. Se o céu não cair sobre minha cabeça, nem chover fogo e enxofre, talvez eu corte o cabelo moicano, entre num curso de rumba ou comece a praticar alpinismo. Afinal, se o churrasco não é mais sagrado, tudo é permitido. (Só o salmoura, pelo amor de Deus, é que não).
Antonio Prata
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23.8.08
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