Sou contra a tortura. Qualquer forma de tortura. Especialistas vários fazem distinções. Uma coisa é espancar um ser humano, eletrocutá-lo, amputá-lo. Isso é tortura. Outra é privá-lo do sono ou "encharcá-lo" para simular o afogamento. Isso é um "interrogatório coercivo" que, sem exagero, qualquer democracia liberal pratica. Devemos tolerar o segundo tipo e condenar o primeiro?
A questão ganha outra dimensão quando nos confrontamos com o célebre dilema da bomba-relógio. Vocês conhecem o filme. O terrorista sabe onde está a bomba; o terrorista recusa-se a confessar onde está a bomba; a bomba, provavelmente, vai chacinar centenas ou milhares de pessoas; devemos torturá-lo? Ou, pelo menos, devemos aplicar-lhe uma tortura mais "branda" e fazê-lo falar?
Não, não devemos. Para começar, o cenário é falacioso porque nós partimos do pressuposto de que o suspeito sabe. Acontece que, na realidade, nós nunca sabemos que o suspeito sabe. Apenas suspeitamos, o que significa que a margem de erro é enorme.
Mas ainda que fosse possível saber, "a priori", que o suspeito detém conhecimento vital e incontestável sobre um ato criminoso, isso não autoriza atos de tortura, qualquer que eles sejam. Mesmo que a nossa inação implique um preço demasiado elevado para uma democracia liberal. Aquilo que distingue a civilização da barbárie é a capacidade da primeira para defender os seus valores, sobretudo quando a tentação de os abandonar é grande. Ninguém disse que era fácil uma vida civilizada; fácil é viver na selva e seguir as leis dos selvagens.
Mas uma coisa é argumentar teoricamente contra a tortura; outra é argumentar na prática. Por isso aplaudo Christopher Hitchens, seguramente um dos melhores colunistas vivos. Hitchens, em artigo para a "Vanity Fair", começa igualmente por estabelecer a diferença entre torturas e "interrogatórios coercivos". E se é mais fácil uma oposição às primeiras, mais difícil se torna uma oposição aos segundos. O próprio Hitchens questiona se, por exemplo, "encharcar" o suspeito com água constitui uma forma intolerável de tortura, sobretudo quando a comparamos com as decapitações que os fanáticos islamitas gostam de executar e filmar sobre civis ocidentais.
E é assim que Hitchens experimenta a terapia: contata as Forças Especiais e oferece-se para ser "torturado". O resultado da experiência, que pode ser visto no site da "Vanity Fair", deixa poucas dúvidas aos leitores. E deixa nenhumas ao próprio Hitchens: se aquilo não é tortura, nada é tortura. "Simular o afogamento" é um bela explicação quando a lemos no sofá da sala, entre dois uísques; quando experimentamos a "simulação", experimentamos o horror do afogamento e a possibilidade de danos físicos, emocionais ou neurológicos permanentes.
Existem torturas e torturas? Muitos acreditam que sim. Eu acredito que não. Mas não discuto. Ou, melhor, discuto: mas só no dia em que os defensores das torturas "brandas" seguirem a honestidade de Hitchens e experimentarem, na pele, a "brandura" do que defendem.
João Pereira Coutinho, na Folha Online.
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27.8.08
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