19.10.08

Metamorfoseantemente

O que vou escrever aqui, eu preferiria, sinceramente, que permanecesse somente entre aqueles que fizeram parte do que aconteceu. Detesto qualquer coisa que soe como auto-promoção. Também não gosto de receber parabéns por algo que, ao que me parece, eu já deveria ter feito há muito tempo. No entanto, em função de alguns pedidos de amigos e, especialmente, pela constante importunação de meu marido, percebi, finalmente, que relatar o que aconteceu neste último sábado, dia 11 de outubro, pode trazer ainda maiores benefícios àqueles que foram o centro do evento.

Há alguns meses atrás, por ocasião de um encontro especial na igreja de uns amigos nossos, acabei tendo que ajudar minha amiga Suzana a cuidar das crianças. Estas crianças não eram filhas e filhos de membros da igreja. Eram crianças visitantes, moradoras de uma vila paupérrima das proximidades, localizada aos fundos do Country Clube. Muitas delas vinham sozinhas, mesmo à noite, mas todas elas vinham pelo lanche e pela possibilidade de estar num lugar melhor. Confesso, tudo o que eu não queria era ajudar a cuidar daquelas crianças. Queria ficar com meu marido, ouvindo ao sermão. Mas fui, para não deixar minha amiga sozinha, tomando conta de cerca de 40 pequenas espuletas.

A verdade é que não fiz nada demais. O trabalho pesado de contar histórias, mantê-las ocupadas com atividades e canções foi todo da Suzana. Minha função foi semelhante a de um segurança, ajudando a manter a ordem. Apesar disso, interagi com algumas delas durante as atividades, fui apresentada e elas se apresentaram a mim. Cantamos juntas. Desenhamos juntas. E durante boa parte do tempo, uma bebê um pouco menor que minha filha sentou-se ao meu lado. Eu e ela não conversamos, apenas ficamos de mãos dadas quase todo o tempo em que permanecemos sentadas daquele modo. Quando percebi, a menina adormeceu encostada em mim.

Terminado o sermão, fomos liberadas, tanto eu quanto as crianças. Despedi-me das pessoas e voltamos para casa caminhando, eu, meu marido e minha filha. Enquanto respondia ao meu marido sobre como havia sido o tempo com os pequenos, comecei a chorar. Chorei de raiva de mim mesma, por fazer tão pouco por quem precisa de tanto. Chorei de vergonha do meu egoismo, de minha completa irrelevância, de minha falta de perspectiva ao achar que meus problemas é que são difíceis. Chorei de compaixão, pelas roupinhas curtas, pelos cabelos grandes, pelas barriguinhas roncando de fome, pelo mau-cheiro, pelo futuro estreito e escuro. Chorei e não conseguia parar de chorar.

Desde então, comecei a refletir em um outro nível a respeito de muitas das coisas que já havia lido, das tantas coisas que sempre discursei em favor, de minha fé e de minha própria vida. Compreendi, pela primeira vez e de um modo totalmente diferente, que precisava fazer algo. Mas não só pelas crianças. Precisava fazer algo por mim, por minha saúde como um todo. Precisava integrar, na prática, aquilo que acreditava, com meus sentimentos e minha prática. Mas o que fazer? Como ajudar?

O resultado dessa reflexão foi uma visita ao passado, onde redescobri aquilo que realmente fez diferença em minha história. Num dos períodos mais sombrios e sem esperança de minha infância, onde eu e minha mãe estávamos prestes a sofrer uma ação de despejo e sem que tivéssemos para onde ir, um tio, o tio Marotti, marido da irmã de minha mãe, levava-me para passear. Nestes passeios, em que às vezes comíamos pizza, às vezes íamos ao Tia Alaíde e jantávamos um gostoso filé à parmegiana, eu esquecia, por um breve tempo, das dificuldades que estávamos enfrentando em casa e entrava em um mundo tranqüilo, gentil, onde as coisas davam certo, onde o trabalho era recompensado, onde não faltava comida.

No entanto, em um destes tantos passeios, eu e meu tio fomos a um lugar diferente: entramos em uma livraria. Lá ele me disse: “Escolhe dois livros, os que tu quiser, que o tio te dá”. Então escolhi Um leão em família e O escaravelho do diabo, ambos da Coleção Vagalume (literatura infanto-juvenil). Junto com estes dois exemplares, ganhei ainda Fernão Capelo Gaiovota, o qual só fui entender alguns anos mais tarde, já que na época eu contava com singelos 9 anos de idade.

Daquele dia em diante, quanto mais o mundo desabava ao redor de mim e de minha mãe, mais eu lia. Fomos morar nos fundos da casa de uma mulher, em duas pequenas peças que não recebiam vestígio de sol, com amplos círculos de mofo nas paredes. Vendemos a TV. Vendemos quase tudo, pois minha mãe custou a conseguir emprego.

Restou-nos um pequeníssimo rádio à pilha, mas freqüentemente faltava-nos dinheiro para as pilhas. Então, na escola, ainda que eu não fosse lá tão bem nos estudos, devorava tudo o que encontrasse da Coleção Vagalume. Depois passei para tudo o que havia sobre mitologia grega e romana. E não parei mais. Aqueles livros eram muito mais que lazer. Eram mais que diversão. Eram mais que aprendizado. Era a minha estratégia de sobrevivência, onde meu mundo era expandido por horizontes até então inimaginados, onde outras formas de resolver os problemas me eram explicitados, onde um outro tipo de vida adulta me acenava.

Felizmente a pobreza não nos assolou por tempo demais. Logo minha mãe conseguiu um bom emprego e conseguimos nos mudar e voltar a readquirir o que tínhamos perdido. Mas desde então, aos 9 anos de idade, eu compreendi que se quisesse viver melhor e me tornar alguém melhor eu precisaria me esforçar para tanto. Precisaria ler, estudar, corrigir meus eventuais erros nas matérias da escola e em matéria de moral, precisaria plantar por muito tempo para somente depois começar a colher um futuro diferente.

Por fim, depois de toda esta viagem no tempo, concluí que só poderia ajudar as crianças da vila naquilo em que eu mesma fui ajudada, naquilo que experimentei em minha vida como um poderoso remédio, como farta comida, como uma janela para um mundo novo. Eu só poderia ajudá-las com livros.

A partir de então comecei uma pequena campanha entre meus amigos para a arrecadação de exemplares. Alguns deles foram mais longe, e convocaram os próprios amigos para ajudar. Outros, sem tempo e não tão próximos geograficamente, doaram quantias em dinheiro, para a aquisição de mais livrinhos. Outros, dilataram o coração e enviaram mais de 30 exemplares lááá de São Paulo pelo correio. O sucesso foi tanto que o resultado foi mais livros do que crianças.

Assim, neste último dia 11, já no fim da manhã, eu e Moisés, o marido da Suzana lá do início da história, fomos até a vila Curva da Cobra. Começamos pelo acesso mais pobre da vila e logo na primeira casa fomos recebidos por quatro meninas e um menino. Seguimos por mais alguns barraquinhos e encontramos mais um menino, o Andrei, que ficou feliz ao receber um exemplar de Robinson Crusoé. Fomos então ao outro acesso da comunidade. Lá encontramos bem mais crianças.

Entramos na casa do Fernando, que estava aplicado fazendo os temas da primeira série e lhe entregamos um livrinho que se chama Meu primeiro livro. Logo o Victor ouviu e veio receber o seu livrinho também. Aproveitamos e deixamos mais um exemplar para o irmão mais velho do Victor, que ainda estava dormindo. E assim seguimos, visitando casinha por casinha, falando com cada criança a que tínhamos acesso, debaixo de uma chuva contínua, apesar de fraca. E de todas aquelas crianças que aceitaram tirar fotos, fizemos um clic, para deixar tudo registrado.

Por saber que um livro sozinho não faz uma biblioteca, me comprometi em voltar até lá no Natal, levando mais exemplares. E, se tudo continuar indo bem, pretendo ajudá-las também no início do ano letivo com alguma coisa de material escolar, e assim por diante, pelo tempo que me for possível. Confesso que gostaria de fazer mais, pois sei que livros, sem comida, sem roupas adequadas, têm pouca eficácia. Mas antes isso do que nada, pois o futuro não se alimenta de palavras vazias.

Sei também que aquilo que compreendi aos 9 anos foi a minha experiência e que não se repetirá de modo idêntico na vida de ninguém. Além disso, há uma porção de variáveis a serem consideradas na história de cada criança: professores ruins, famílias destruídas, problemas de saúde, drogas e muito mais. De todo modo, é preciso fazer uma aposta na direção contrária, mesmo que as chances sejam poucas. Alguém precisa acreditar e tentar. E eu prefiro perder tentando do que nada fazer, apenas observando.

Enfim, quero deixar aqui o meu agradecimento a cada um dos meu amigos que ajudou nesta campanha e, mesmo àqueles que não puderam ajudar, mas ficaram na torcida para que tudo desse certo. Quero agradecer também àqueles que me desestimularam, dizendo que eu acabaria com um estoque de livros em casa e sem fazer coisa alguma. Sabe, poucas coisas funcionam tão bem comigo quanto ser subestimada, portanto, obrigada a vocês também. E para quem quiser contribuir, por favor, deixe um comentário que entro em contato com você. Tenho certeza de que havendo boa vontade, as condições serão criadas e as crianças serão alcançadas.

Camila Hochmüller, no blog Metamorfoseantemente.

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