24.10.08

Outras palavras

“O que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas obsessões.”
Nelson Rodrigues, jornalista e dramaturgo

Nos últimos anos, participei da escolha do título de mais de 700 livros. Ainda que tratando-se de obras traduzidas na maioria dos casos, a dificuldade no “batismo” não foi menor. Que equação complicada escolher algumas palavras que traduzam a proposta do autor e, ao mesmo tempo, instiguem os potenciais leitores!

Viciados em mediocridade preenche ambos os quesitos de forma notável. Antes mesmo de iniciar a leitura do texto, o título provocante já suscita questionamentos e (in)conseqüentes reflexões. Difícil permanecer impassível ante um diagnóstico tão contundente...

Embora escrito na década de 80, a mensagem do livro permanece atual e é especialmente bem-vinda no Brasil. Enquanto desperdiçamos pelo menos duas décadas esgrimindo para usar bateria nos templos, a fila andou no mundo. E bastante.

Claro que sempre existiram vozes dissonantes por aqui. Algumas se levantaram para insurgir contra hinos americanos enlatados. Não sei se o queixume adiantou, mas há quem esteja supersatisfeito com novidades no cardápio do tipo canções em versão light... made in Austrália. Como cantava o Cazuza, “um museu de grandes novidades”. Não apenas o futuro repete o passado... somos todos repetentes no supletivo da inovação.

“De nada serve partir das coisas boas de sempre mas, sim, das novas e ruins.”
Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta

Em meio à penúria reinante, algum espertinho criou uma solução que continua sendo avidamente deglutida pelo rebanho. O conteúdo é sofrível e sem qualidade? Basta pospor um adjetivo. Assim, temos a “adoração extravagante” e a “dança profética”, entre inúmeros ardis de eficácia nula fora do quadrado evangélico. Círculo apenas se pensarmos na retroalimentação que move nossa irrelevância.

Basta alguém iniciar uma discussão sobre a indigência artística cristã para descobrirmos que a mediocridade se estende também à capacidade de reflexão do rebanho. O tema em questão rapidamente é esquecido e recorre-se a uma infinidade de chavões do tipo “não tocar no ungido”, “até a mula de Balaão foi usada”, “Deus olha o coração”, “em vez de criticar devemos orar”, “quantas almas você ganhou?”, entre outros clichês menos cotados.

Adeptos desse tipo de reducionismo ficarão perplexos e possessos (sem trocadilho) com os termos usados por Schaeffer nestas páginas. O cara massacra impiedosamente a produção cristã... Essencial lembrar que o escritor se refere aos Estados Unidos. O que ele escreveria se desse uma passadinha aqui na terra das unções, levitas, sapatinhos de fogo e quejandos?

Pensando melhor, ele não deve aterrissar aqui porque anda meio ocupado com a faxina nos armários familiares. Em meio a muita poeira, revelações pra lá de indiscretas enxovalharam a imagem do papai Francis Schaeffer. A morte da razão?

“O revolucionário inventa as idéias. Quando as exaure, o conservador adota-as.”
Mark Twain, humorista e escritor

Em certos trechos da obra, Franky deixa a Arte de escanteio para sublinhar pensamentos hiperconservadores. A química parece meio estranha, afinal é comum ligar “arteiros” e artistas ao pensamento liberal. Mais uma vez o Brasil mostra ao mundo o seu caráter singular. Neste país tropical abençoado por Deus tanto os expoentes tidos como “liberais” quanto os “ortodoxos” pouco ou nada entendem do assunto. Mansa gente brasileira!

Sem a guarida dos teólogos, outra opção para estimular o debate seria usar as lentes da mídia. Um rápido exame mostra que as revistas ocupam-se de veleidades e temas relevantes como a festa de aniversário dos rebentos de cantoras de nomes tão improváveis quanto desconhecidos... Ao menos as publicações não escorregam no quesito harmonia: são ruins de capa e de conteúdo. Deselegância nada discreta.

Antes de pensar em possíveis epitáfios para a arte cristã verde-amarela, restam duas opções: livros e internet. Se você está com este livro em mãos, só o seu interesse pelo assunto já me faz aplaudir efusiva e pentecostalmente. O triste é lembrar que o Schaffer vai falar somente com alguns milhares de leitores, enquanto mantras e baboseiras em ritmos variados continuarão entorpecendo os ouvidos e a mente da turba.

No entanto, como tenho o gene da rebeldia impregnado nas cadeias do DNA, não acredito em soluções prontas. Da mesma forma que discordei de muitos lances elencados nestas páginas, espero que você siga pela mesma trilha, questionando e refletindo sobre cada ponto abordado. Como o livro apresenta uma espécie de “monólogo” doe seu autor, graças a Deus existe a internet para dar voz e vez aos leitores. Vários sites e blogs vão publicar esta diatribe prefacial, possibilitando a (re)ação e interação de todos. Se a palavra “viciados” indica a necessidade de cura, penso que o caminho terapêutico indubitavelmente passa pelo debate.

“Aos melhores falta toda convicção, enquanto os piores são cheios de apaixonada intensidade.”
W.B. Yeats, poeta e dramaturgo

Como diria certo molusco, nunca antes neste Reino discutiu-se tanto sobre Arte. Meu reconhecimento e gratidão aos amigos Whaner e Ana Claudia pela contribuição que a W4 e o Cristianismo criativo têm dado ao rebanho. Se podemos vislumbrar um horizonte menos caótico no cenário artístico cristão, certamente o desvelo e a ousadia de vocês tem parte nisso.

A existência de limitações diversas não nos acovarda. Ao contrário, nos leva à ação diligente. Em nossa extensa lista de pecados e falhas não há de constar aquilo que o Rabino Jonathan Sacks classifica de “culpa do espectador”. O que estiver ao alcance de nossas mãos faremos com o melhor de nossa energia. Nas palavras do profeta João Bosco, “a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar”. Yes, the show must go on!

prefácio que escrevi p/ o livro Viciados em mediocridade, próximo lançamento da W4 Editora.

11 comentários:

Anônimo disse...

Voce provavelmente não vai gostar do que vou falar mas voce eh uma voz profetica para esta geração.

Deus conserve e multiplique seus talentos!!

bjus

Márcio Rosa disse...

Uau!
Já estou ansioso para ler o livro.
Você, como sempre, detonou!
Muito bom, Pavarini!
Parabéns.
Abraços,

Márcio Rosa

P.S. O livro já está a venda? Onde?

Anônimo disse...

Pavarini, show de escrita como sempre, não vou chover no molhado falando de sua incrível percepção do Reino de Deus e seus desdobramentos. Depois de ler esse prefácio, agora que fui me dar conta que Frank é o mesmo autor que Ruth Tucker em seu livro “Fé e Descrença”, recém lançado pela editora Mundo Cristão, cita e expõe os problemas familiares de seu conhecido pai Francis, seu filho após a recente morte do pai escreve um livro que diz ser ficção, entretanto as coincidências com sua vida em família são muitas que causou um furor no meio cristão ao revelar que a tensão da família girava em torno das crises de seu pai conhecido apologista e autor cristão Francis Shaeffer.. Como Ruth relatou em seu livro sobre a escrita do filho de Frank:

“Em casa na Suíça, nós muitas vezes íamos para os quartos uns dos outros e ficávamos bem juntinhos para nos proteger dos tons altos e baixos da voz do papai nervoso, interrompidos pelo baixo murmúrio das respostas da mamãe. [...] Depois ouvíamos coisas indizíveis que nos deixavam sem graça, morrendo de vergonha. No anos passado ele bateu a porta de vidro entre o quarto deles e a sacada com tal violência que ela se estilhaçou, e noutra ocasião ele havia atirado um vaso com uma planta contra nossa mãe.”

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Pavarini diz que discorda de alguns lances do livro, talvez isso se de pela criação fundamentalista que teve Frank, pois seu pai era um ministro presbiteriana reformado que pregava piamente os princípios calvinistas da doutrina da depravação total aos católicos perdidos e sentenciados ao fogo eterno.

Em recente artigo “Nem todos gatos são pardos” escrito por Robinson Cavalcanti, ele critica as editoras que omitem a filiação dos anglicanos nos principais livros publicados no Brasil, com “vergonha” por serem anglicanos e e com medo de terem prejuízo na comercialização das obras. Não é o caso da W4, que ao publicar esse prefácio, abraça todos os riscos possíveis, entretanto joga limpo com o leitor sobre os pensamentos do autor que podem ou não influenciarem numa futura cultura artística cristã dentro e fora de nossas igrejas tupiniquins.

Cabe ao leitor escolher filtrar as propostas de Frank como fez Pavarini. Mesmo com o filtro com certeza a obra vem para ser um marco para a igreja brasileira que esta no jardim da infância sobre este tema.

Abraço a todos,

Anônimo disse...

Procurei este post no blog do Volney, para postar o comentário lá, mas não encontrei.
Perdoe a lentidão deste tupiniquim, mas está sendo muito difícil para mim, um viciado em mediocridade em recuperação, após muitos anos de dependência, entender algumas idéias. Não sei se serei capaz de assimilar o programa; pelo menos não por esta via, a do entendimento. Será preciso que o Espírito Santo exploda as paredes do meu coração e do meu cérebro para me libertar desta matrix teológica.
Mas não custa tentar, pois acho que Deus propositadamente nos deixa exaurir as nossas forças na tentativa de libertar a nós mesmos a fim de encontremos a revelação do Jesus libertador.
Não sei se entendi bem mas, nesse prefácio, por acaso, o Volney está associando espiritualidade à erudição?

Volney Faustini disse...

Mais um suspeito a comentar ... porém não sou de ficar quieto:

Seu prefácio vale pelo livro.

Estou nessa!

Volney Faustini disse...

P.S. Aquela da fila andou enquanto discutíamos batera ... kkkkkkkkk

Demais!

Anônimo disse...

Meu Deus, por que não continuei com os planos de cursar jornalismo? Talvez assim teria uma escrita parecida.
Pava, vc arrebentou, muito bom, excelente, se todo prefácio é um antepasto para a degustação do livro, meu caro, este livro vai arrebentar com a mesmice evangélica pós-moderna.
Quando o livro vai ser lançado? E o preço vai ser acessível? (por favor, imitem a MC)
CAra, vou presentear ums músicos com esta "bomba" anti-movimento-gospel.
Forte abraço,
D+++++!

Anônimo disse...

Pava!!!! Agora teeeenho que ler, não tem outro jeito!
Putz, você é o cara que alivia minha sensação de ser uma ilha...
Quanto à mediocridade..tenho lá minhas recaídas. Hoje me emocionei e postei vídeo do Hillsongs...pode? "Fazê u quê???"
Beijões!!!!

Sanchez disse...

ALELUIA!!! (hehehe)
Pô, fala sério, achava que só eu surtava (de raiva) com os mantras que temos por aqui!
Com certeza lerei esse livro! Valeu pela indicação e adoro isso aqui!rs
bjos

jorgebarros disse...

Caro Pavarini!
Depois de algum tempo fora do altar como ministro do evangelho e convivendo secularmente como pessoa normal e mortal no mundo de mortais, via minha vida secular, ao retornar ao ministério nestes três últimos anos trago em minha bagagem de não poucas experiências no campo das relações humanas, uma nova e radical percepção do Reino de Deus e da Igreja do Senhor Jesus,"aquela que as portas do inferno não prevalecerão contra ela", a ponto de entender profundamente o título deste já esperado lançamento, bem como o seu prefácio, certamente já tão rico quanto o conteúdo do próprio livro.
Pr. Jorge Barros
Ministério CEDICRISTO

Lu Vaz disse...

aaah q bom, pensar não é, com parece, pecado. fico feliz em 'achar' vcs na rede.

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