Certo de estar a ponto de ferir a sensibilidade de alguns, quero deixar clara minha posição sobre determinado assunto: o Estado de Israel não representa qualquer continuidade, mesmo que honorária, com a tradição religiosa judaico-cristã registrada nas duas metades desiguais da Bíblia.
Historicamente e espiritualmente falando o Estado de Israel não representa a religião que se convencionou chamar de judaísmo, e creio que pelo menos lá todos sabem disso. Há muitos judeus devotos ao redor do mundo, muitos desses em Israel, mas não cabe identificar israelitas com israelenses ou o associar o Estado de Israel à Terra Prometida (e muito menos ao reino de Davi); qualquer tentativa em contrário é engano ou esforço de marketing e de relações públicas, sendo esses últimos patrocinados em grande parte pelos Estados Unidos, com o consentimento embaraçado de Israel.
Tenho amigos em Israel e estou muito longe de ser anti-semita; tenho também queridos amigos muçulmanos, e não sou ingênuo o bastante para crer que a tensão entre Israel e o mundo árabe seja simples de recapitular, de equacionar, de assimilar ou de solucionar. Também não tenho qualquer antipatia pelos israelenses que não são judeus, e tampouco creio haver qualquer diferença de mérito entre as categorias igualmente arbitrárias que acabo de mencionar.
Amai, pois, o estrangeiro, porque fostes estrangeiros na terra do Egito.
Tenho ainda a dizer que apenas as guerras me enfurecem mais do que Estados e nações; apenas as guerras soam-me mais atrozes e arbitrárias do que rótulos.
Mas a guerra é um demônio que não pára: seu emblema é o símbolo alquímico das duas salamandras devorando incessantemente uma a cauda da outra. O terrorista de um lado é o herói da resistência do outro. Cada ataque confirma as piores suspeitas que um adversário tem do seu antagonista; cada ofensiva é redimida com novos recrutamentos, que garantem a perpetuação do conflito. Os Estados Unidos permanecem liberando indiscriminadamente o Iraque, fomentando indignação igualmente justificada entre muçulmanos letrados e chãos.
Israel, sentindo-se ameaçado como nunca pelo Hezbollah (que é por sua vez patrocinado por implacáveis rancores iranianos e sírios), está atacando de formas sujas e limpas palestinos e libaneses – que estão longe de ser inocentes, mas que morrem com a facilidade atroz de qualquer um – enquanto na América cristãos queimam cópias do Corão em austera homenagem ao Príncipe da Paz. Morrem quase quatrocentos libaneses num único dia da semana passada, ao mesmo tempo em que os israelenses abandonam em massa o norte do país temendo velhos ataques e novas retaliações.
* * *
É comum associar o cristianismo e a mensagem de Jesus a uma compreensão nova, inclusiva e compassiva sobre a natureza do “outro”. Isso é em grande parte muito acertado, mas é bom lembrar por exemplo que “amai o próximo como a ti mesmo” é injunção da Bíblia hebraica – curiosa exigência que precede a Jesus e da qual o judaísmo não prescinde.
Se Deus não faz acepção de pessoas, todos os genocídios são o mesmo
Na verdade, são inúmeros os mandamentos da Lei de Moisés explicitamente desenhados para proteger o desavisado outro – o estrangeiro – que se encontrasse em terras de Israel. E o motor dessa tolerância, o declarado motivo para essa misericórdia, deveria ser segundo o texto a recorrente lembrança do passado de Israel como povo estrangeiro e oprimido no Egito, antes do Êxodo e da independência e da Lei: “amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito”.
O israelita é dessa forma desafiado constantemente pela sua Lei a recordar a abjeção da sua condição anterior, bem como a dispensar ao estrangeiro a misericórdia que no passado não obteve:
Não rebuscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha; deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o SENHOR, vosso Deus.
Quando segardes a messe da vossa terra, não rebuscareis os cantos do vosso campo, nem colhereis as espigas caídas da vossa sega; para o pobre e para o estrangeiro as deixareis. Eu sou o SENHOR, vosso Deus.
Se o estrangeiro peregrinar na vossa terra, não o oprimireis.
Como o natural, será entre vós o estrangeiro que peregrina convosco; amá-lo-eis como a vós mesmos, pois estrangeiros fostes na terra do Egito. Eu sou o SENHOR, vosso Deus.(Levítico 19:10, 23:22, 19:33-34)
Outras passagens sustentam que o verdadeiro patrocinador desse amor tolerante pelo estrangeiro/outro é o caráter singular de Deus, que não aceita suborno e não faz distinção entre as pessoas:
Pois o SENHOR, vosso Deus, é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o Deus grande, poderoso e temível, que não faz acepção de pessoas, nem aceita suborno;
que faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e vestes.
Amai, pois, o estrangeiro, porque fostes estrangeiros na terra do Egito.
Não aborrecerás o edomita, pois é teu irmão; nem aborrecerás o egípcio, pois estrangeiro foste na sua terra.
Não perverterás o direito do estrangeiro e do órfão; nem tomarás em penhor a roupa da viúva.
Quando acabares de separar todos os dízimos da tua messe no ano terceiro, que é o dos dízimos, então, os darás ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva, para que comam dentro das tuas cidades e se fartem.(Deuteronômio 10:17-19, 23:7, 24:17, 26:12)
Porém o mundo dá voltas, e os palestinos são hoje hóspedes impossivelmente incômodos dos israelenses, da mesma forma que Israel é refém do mundo árabe, embora conte com a proteção dos americanos, graças aos quais os iraquianos são também estrangeiros em sua própria terra. Só me resta pedir que Deus proteja os estrangeiros que são todos, porque não posso esperar que judeus e cristãos e muçulmanos honrem suas Escrituras ou neguem sua história.
* * *
Ninguém me venha, finalmente, acusar de anti-semitismo: se Deus não faz acepção de pessoas, todos os genocídios são o mesmo. Quanto a judeus e cristãos e muçulmanos que derramam sangue ao mesmo tempo em que alegam possuir alguma intimidade com a Misericórdia, façam-me um favor: vão para o inferno.
Maldito aquele que perverter o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva. E todo o povo dirá: Amém! (Deuteronômio 27:19)
Paulo Brabo, no blog A Bacia das Almas [publicado originalmente em 25/7/06].
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8 comentários:
Excelente texto do Brabo! EXCELENTE! Tb o postei no meu blog.
Posicionamento necessário, importante e esclarecedor!
Ontem na Folha, um dos articulistas dava como a única possível posição equilibrada: ser um pacifista radical.
Para situações de crise - medidas extremas ... como por exemplo seguir o Mestre.
Isso em si já é radical!
E olha que o Brabo ainda não recorreu a Mateus 5 e mais uns trechinhos bíblicos neotestamentários ...
Contra a lamúria "humanista" e "progresista" de Brabo e Gondim recomendo a leitura de João Pereira Coutinho, Reinaldo Azevedo e Caio Fábio.
PQP, Reinaldo Azevedo? Existe alguém mais fascista, mais ordinário que ele? Se depender dele não sobra ninguém...
Vi no Twiter as sugestões e vim conferir se eram de verdade. Nesta hora os xiitas até reabilitam o Caio Fabio!! Patético.
É de dar sono uns comentários como o de cima. Ler Reinaldo Azevedo??
Tudo bem anônimo, a piada foi boa mas incompleta; faltou pedir pra ler Veja(q horror), assistir Globo(da morte) e bater um papo gostoso com alguns "ortodoxos". Aliás, essa moçada "progressista" é um bando de sem noção.
Me divirto com a intolerância dos "tolerantes"...
Reintero a sugestão para a leitura da última coluna do João Pereira Coutinho na Folha "Mudar as Palavras"- aliás, tudo o que ele escreve vale a leitura.
Reinaldo Azevedo é excelente, concorde ou não com suas opinões.
Caio Fábio escreveu ótimo artigo de opinião sobre essa guerra e da minha parte recomendo tudo o mais que ele escreve. É um amigo, gente boa de Deus..
É simples, toda a vez que ler um texto do Ricardo, leia dois do Caio. "Contra" Brabo, leia Azevedo. Se for de Ariovaldo, vá de Olavo de Carvalho...assim estará sempre "vacinado"..rsrsrs..
"Reintero"? Nem deu pra ler o resto. tsk tsk tsk
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