1.1.09

Um Ano Novo feliz e desconfiado

SE VOCÊ quer começar o ano com o pé direito (ou seja, como é costume, com alguns bons propósitos), não perca "Um Homem Bom", de Vicente Amorim. O filme, uma produção anglo-alemã, traz para a tela "Good", de C. P. Taylor -peça de 1981, que é uma das grandes meditações literárias sobre a poltronice que pode levar qualquer um às piores cumplicidades.

Viggo Mortensen é o professor Halder, que, na Berlim dos anos 1930, ensina Proust na universidade e se deita regularmente no divã de um psicanalista freudiano. Junto a seu psicanalista (que é judeu e é também seu melhor amigo), Halder observa o nazismo incipiente com um sarcasmo que se torna desgosto quando os livros de seus autores preferidos são destinados à fogueira. Em suma, tudo prepara Halder para ser um dissidente (eventualmente morno e pouco heroico, mas, mesmo assim, um dissidente).

Ora, eis que, um belo dia, a Chancelaria do Terceiro Reich se interessa por um romance que Halder publicou sem grande sucesso. Nele, é narrada a história de um homem cuja amada sofre de uma doença terminal; por amor, o homem aceita ajudá-la a pôr fim a seus dias. A Chancelaria pede a Halder um ensaio que sirva de fundamento moral para os projetos de "eutanásia" que o regime nazista, "caridosamente", está concebendo para doentes mentais e deficientes graves -na verdade, para todos os "subumanos".

Halder não quer o mal de ninguém -ainda menos o de seu amigo judeu. Mas, aos poucos, ele é enredado numa malha de sentimentos pequenos, banais e dificilmente resistíveis: vaidade, ambição, medo e, talvez sobretudo, preguiça e inércia. Tornando-se membro do partido e da SS, Halder pode festejar sua promoção: ele é agora chefe de seu departamento universitário. Claro, no dito departamento, não se ensina mais Proust. Também, em sua ascensão, Halder substituiu um colega judeu; é uma pena, mas, afinal, se não fosse Halder, seria outro, não é?

Assim, à força de covardias aparentemente triviais, homens "bons" e comuns se tornam cúmplices de horrores dos quais, sem mentir propriamente, eles poderão dizer que "não sabiam", "não imaginavam" nada disso. Ou, melhor ainda, sem mentir propriamente, eles poderão dizer que, se tivessem sabido, se tivessem sido informados, aí sim, eles, "obviamente", não teriam concordado, sua oposição teria sido explícita e vigorosa, mesmo que isso colocasse a perder sua carreira e sua vida.

Alguém observará: o fascismo e o nazismo foram derrotados na Segunda Guerra Mundial, e o sistema soviético desmoronou com o Muro de Berlim -por que é que a gente se debruçaria a esta altura sobre a facilidade de nossa complacência com os totalitarismos? Seria possível responder que a lista é longa dos totalitarismos, grandes e pequenos, que continuam vivos ainda hoje, e não muito longe de nossa casa.

Mas o mais importante é que a complacência com o totalitarismo segue sendo a chave mestra que explica quase todas as patologias de nossa relação com as coletividades (nações, torcidas, religiões, culturas, partidos etc). Claro, pertencer a um grupo e se deixar levar por ele é sempre menos cansativo do que decidir por nossa conta. A ponto que as razões para aderir ao grupo se tornam indiferentes: o que importa é o conforto que o grupo oferece a seus membros.

Em outras palavras, para não ter que pensar e agir sozinho, o homem "bom" topa qualquer parada. Por exemplo, pertencer ao partido nazista alivia seriamente meu dever (incômodo) de pensar e agir segundo meu foro íntimo; aceito ser antissemita, homofóbico, defensor da supremacia ariana etc. tanto mais facilmente que tudo isso, no fundo, pouco me importa: é apenas um pedágio que pago para ser membro do clube.

Paradoxo crucial: um grupo pode se unir ao redor de uma ideologia ou de uma convicção na qual quase nenhum de seus membros, em sã consciência, acredita, mas que todos compartilham apenas PARA constituir um grupo -ou seja, pelo prazer de sair quebrando vitrinas, linchando negros e "bichas", torturando calouros, apedrejando o ônibus da torcida oposta. E qual é esse "prazer"?

Simples, é o prazer de esquecer a dificuldade de viver, tirando das costas o fardo e a responsabilidade de julgar com a nossa cabeça. Pois bem, aqui vão meus votos de um Ano-Novo corajoso, livre das pequenas (e terrificantes) complacências do nosso dia-a-dia.

Contardo Calligaris, na Folha de S.Paulo.

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