EU ESTAVA ASSENTADO no palco e observava o auditório lotado. Muitas cabeleiras brancas, muitas cabeleiras grisalhas e muitas calvas brilhantes. Era um público de gente velha. Estavam lá para me ouvir. Havia sido anunciado que eu faria uma fala sobre a terceira idade. Mas eu teria preferido que tivessem anunciado uma conversa sobre velhice... Acho a palavra "velhice" mais poética que a expressão "terceira idade"...
Mas essa palavra "velhice" não aparecia no convite. A "linguagem politicamente correta" a havia proibido. Referir-se a alguém como um "velho" era grosseria, ainda que ele ou ela, por força dos anos já vividos, fosse na realidade um velho. Por vezes, a realidade ofende e é preciso criar máscaras e disfarces para escondê-la. Para esconder a realidade da velhice, diz-se, de forma elegante, que se trata de uma pessoa "idosa" ou da "terceira idade".
Eu não me considerava idoso e nem me colocava dentro do conjunto da terceira idade, muito embora um repórter de um jornal da minha cidade tenha chamado de "ancião" um senhor de 50 anos que fora atropelado. Segundo os critérios desse jovem, se eu fosse atropelado seria imediatamente promovido à categoria de "ancião"...
Feitas as introduções e apresentações preliminares, chegou a minha vez. Fiz silêncio. Olhei demoradamente para os idosos que esperavam de mim um elogio à terceira idade e comecei: "Então os senhores e as senhoras chegaram finalmente a esse glorioso momento da sua vida em que podem se entregar à felicidade de serem totalmente inúteis...".
Aí aconteceu o que eu sabia que aconteceria. Não me deixaram continuar. Fui imediatamente interrompido por protestos indignados. Todos queriam provar a sua utilidade. Um dos idosos contou sobre a sua horta. Um senhora descreveu as colchas de retalhos que fazia. Um outro contou sobre o hobby que desenvolvera fazendo brinquedos artesanalmente...
Deixei que falassem à vontade. Eu os havia provocado de propósito. Falavam movidos pela ideologia da nossa sociedade, que julga as pessoas da mesma forma como julga as lâminas de barbear, as esferográficas e os filtros de café...
Uma lâmina de barbear rombuda, uma esferográfica esgotada, um filtro de café usado deixaram todos de ter utilidade e vão para o lixo. O mesmo acontece com os seres humanos que deixaram de ser úteis.
Esgotada a indignação contra mim, acalmados os ânimos, a palavra me foi devolvida: "A Nona Sinfonia de Beethoven é absolutamente inútil. Não há coisa alguma que se possa fazer com ela. Mas uma vassoura, ao contrário, é muito útil. Serve para varrer, tirar o lixo, eliminar as teias de aranha... Vocês estão me dizendo que preferem a vassoura útil à Nona Sinfonia inútil...
Vejam esse poeminha da Cecília Meireles: "No mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta. No planeta, um jardim. No jardim, um canteiro. No canteiro, uma violeta. E na violeta, entre o mistério do Sem-Fim e o planeta, o dia inteiro, a asa de uma borboleta".
Pra que serve esse poema? Pra nada. É inútil. Já o papel higiênico é muito útil... Vocês estão me dizendo que, no seu julgamento, o papel higiênico vale mais que o poema...
Repentinamente os rostos indignados se abriram em sorrisos. E aprenderam a sabedoria dos poetas e artistas, tão bem resumida no aforismo de William Blake: "No tempo de semear, aprender. No tempo de colher, ensinar. E quando o inverno chegar, gozar...".
Rubem Alves, na Folha de S.Paulo.
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7.3.09
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