18.4.09

Deixe minha culpa em paz

Todos, aviso: todos!, pedem para que me livre da culpa. Assuma meus atos. Não transfira a responsabilidade.

Todos, aviso: todos!, são desencanados, leves, budistas. Ou tentam parecer que se entendem.

A culpa estragaria, a culpa imobilizaria, a culpa nos induziria a enganos. O problema é sempre da culpa.

Não desperdiço, não jogo fora a minha culpa. Minha culpa é pai e mãe, é Espírito Santo. Família é boa para gerar traumas, aproveitemos, traumas são as únicas lembranças que não serão esquecidas.
A culpa nos torna atentos, missionários dos cílios. O homem só é romântico com a culpa. As flores criminosas crescem à vontade na ponta de seus dedos. Com culpa, homem é humilde e amoroso como um chapéu na cadeira, um avental no gancho. O sexo é muito mais intenso e voraz com a culpa. Trepa-se como se fosse a última vez sempre. Os pais pedem desculpas pela culpa. Largam a arrogância dos castigos pela audição dos pés. Os bichos aprendem seus hábitos pela culpa. Trocam o cativeiro pela obediência.
Culpa, ó palavra bonita, gostosa de se repetir, dádiva próxima do perdão.
Culpa é voltar para o lugar que nascemos. É se arrepender antes de fazer e continuar fazendo. Uma teimosia que nos leva à perfeição dos erros. Um erro perfeito é virtude. A culpa, não consigo parar de repeti-la, não nos resolve, é um tratamento sincero. Não nos salva, é uma verdade médica. Percebemos que sempre nos enganaremos. Mas é se enganar com gosto, com vontade.
Quem procura se curar é careta. A culpa não tem cura, é libertina, libertadora, retirar adrenalina de todo pecado. OU alguém nunca se sentiu culpado por nascer? Culpado por amar? Culpado por ser sincero? Culpado pelo talento ou pela falta de talento?
Não pretendo pagar a conta sozinha. Sem culpa, eu me isolo, eu me vejo independente e pronto. Consumido. Não há vela que não se derreta por todos os lados. Culpa é minha crisma, minha primeira comunhão, a alegria de saber que Deus está me enxergando.
Culpa me limita, me põe a recuar na raiva, a desistir da arma e da faca, me violenta antes que cometa violências. Ninguém mata o outro com culpa. A culpa é civilizada. Que tenha culpa antes do que depois.
Sem culpa, não existe vida eterna. É vassoura e cinzas. Uma pazinha e acúmulo de asas transparentes na horta. Não existe literatura, sequer leitor angustiado pelo final.
Aproximem, fiéis, da culpa. Para comprar um apartamento, dependo de fiador. A culpa é o fiador mais próximo. A conversa fiada da memória. Não bancarei minhas falhas, não sumirei com a nota fiscal da taverna. Se não gozar, coloque a culpa nela. É melhor do que arrebentar de estresse. Se não for feliz, coloque a culpa nela. É melhor do que problema nos intestinos. Não tome todas as culpas para si, não seja egoísta. Doe sua culpa para doer menos. Culpa é contagiosa, virulenta.
Não procure manter a pose de esclarecido, centrado, tranqüilo. A teoria não prevê um cavalo atravessando um rio. Somos um cavalo nadando.
arte: Boticelli
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