Praticar uma loucura não me torna louco.
Bem sei que nasci num mundo que cansou de ultrapassar os limites, decidiu retroceder as barricadas e moralizar as sobras. Azar é o meu.
Varremos as cicatrizes para debaixo das tatuagens.
Somos bem mais conservadores do que nossos avôs. Desejamos uma fantasia romântica, mas percorremos a mesma única estrada. A que nos ensinaram a ir à escola. Há outras vias baldias e escuras que não são descortinadas - e orvalham quietas pelo excesso de vidro.
Lamento que ninguém mais tome carona no amor - é só dirigindo. Não suportamos que os outros não nos entendam. Um amor tem que ser público, não pode ser proibido, profano, incompreensível, enigmático, atávico, selvagem. Não pode acontecer na cozinha e no banheiro, no elevador e na garagem. Tem que ser visto. Defendemos o orgulho e a vergonha no lugar do mistério e do segredo. O que não pode ser contado passa a não existir. Não deixaremos um testamento - ele já foi feito. Não deixaremos a relíquia fechada de uma carta que talvez nos explique no fim da vida. Não haverá a nostalgia imponderável perante as janelas – todos estão em casa. Somos viúvos da própria vida.
Esvaziamos o nosso fim desde o nascimento. Não sobrevivemos à clandestinidade. Resolutos, claros, transparentes; o desvio é doença, o estranho é feio, o medo é hostilidade.
Tudo que é diferente é encaminhado como louco. Tudo que é imaginoso é dito como mentiroso. Busco meu filho na escola e escuto o chiado das cigarras na boca alheia entoando que é maluco alguém escrever Jesus na cabeça. Não me preocupo, aprendi na roça: cigarras nunca morrem, apagam-se. Como avisar que dentro do guarda-chuva existem facas para cortar a luz?
Como avisar para desdobrar a vareta e jogar fora a lona?
Como avisar que os telhados são caminhados?
Como avisar que encontro mais astúcia no desespero do que na tranqüilidade?
Cumprimento o crepúsculo com o menear do chapéu. Sou antigo para receber o sol, novo para desobedecer a noite. Há duas formas de loucura. A loucura triste, que se guarda para nunca gastar o corpo, e a loucura alegre, que esquece o corpo para protegê-lo.
Loucura alegre não vai se arrepender daquilo que tentou porque ela não tenta, ela é, quem tenta procura um resultado que não virá e será uma loucura triste. Loucura alegre é a matemática pictórica de Escher (subir as escadas de um prisma). Ou as cores berrando de Frida Kahlo (deitar numa banheira eletrocutada pela paisagem). É a voz rouca de Tom Waits (cantar como se não estivesse acordado). E o desfiladeiro dos dentes brancos da negra Billie Holiday (alfaiate da voz).
Loucura alegre não se preocupa com migalhas. As migalhas chamam os pássaros.
Loucura triste emburrece a esperança. Pede para cobrar, reprime para deprimir, manda para calar. É uma tristeza sem cócegas. Quem não ficou com a gente é mau caráter. Quem ficou é acomodado.
Loucura alegre tem suspiro. O suspiro é a escada rolante da lembrança. Quem não suspira não tira o gemido da risada.
Minha loucura é uma alegria para depois que chega antes. Aconselho a enlouquecer comigo e odiar minha conversa. Mas que seja um ódio criativo.
arte: Frida Kahlo
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