HOJE ESTOU no lado negro da força. Dormi mal. Um leitor pergunta: "você é contra a democracia?" Não! Eu?! Mas acho sim que a democracia moderna tem algo de idiota.
Mais do que um conceito, esta ideia é uma sensação, assim como um odor. Digo "idiota" no seguinte sentido: vivemos numa época na qual os idiotas venceram porque descobriram pelo voto que são maioria absoluta. Eles impõem ao mundo sua vida medida pelas estratégias de sucesso e pelo amor opressivo do medíocre -esta nossa face indesejável, estampada em nosso espelho íntimo. Antes de ser senhora do mundo, essa multidão de iguais vivia sua pequena vida, imersa num pessimismo modesto, de quem não tem para onde ir. Hoje, essa praga da vida estratégica é uma deformação em cada rosto.
Assumindo ares de senhores, os idiotas tomam conta do pensamento, construindo um mundo visto pelos olhos de quem só sabe viver contabilizando as vitórias de seu desejo. Sua religião vira uma "espiritualidade" que crê num universo conspirando a favor de seu sucesso, fazendo do universo um idiota, como ele, só que infinito.
Vivesse Kafka hoje, certamente escreveria histórias de medo sobre como a elite intelectual (talvez com face de rato) virou proletária, em busca de carreiras, somando seus pontos, escrevendo artigos para não serem lidos, somando suas mesquinharias, anulando a inteligência em nome do acúmulo. O idiota faz da ética um divã a serviço de suas utopias de alcova. A modernidade, com sua vocação natural para fluxos administrativos e sistemas organizacionais, deixa o idiota em êxtase.
Criticar a democracia moderna não implica amar regimes antidemocráticos. Implica, sim, reconhecer que a democracia é, também, em sua intimidade, uma forma específica de desastre. Proponho o ensaio "The Masses in Representative Democracy" (as massas na democracia representativa) do filósofo inglês Michael Oakeshott (século 20). Neste ensaio, ele narra o nascimento do anti-indivíduo ou homem massa.
A diferença entre o filósofo inglês e o tratamento mais comum dado pelos especialistas ao homem massa é que para Oakeshott a ideia de que todo ser humano venha a ser um indivíduo autônomo é uma lenda. Aí está um dos dogmas da democracia moderna: todo homem é capaz de ter vida subjetiva válida e de ser "portador" de uma personalidade autônoma.
A sensibilidade democrática moderna, com sua mesquinha paixão pela felicidade, treme diante desta hipótese, apesar do acúmulo de evidências empíricas cotidianas a seu favor. O Renascimento criou a lenda do indivíduo como uma possibilidade aberta a todos, posteriormente concretizada nas revoluções modernas. Para além da ideia (comum) de que a sociedade ou a mídia esmaga o indivíduo nascente, Oakeshott duvida da probabilidade mesma de que exista em todos nós um indivíduo possível. O debate supera a mera questão política e adentra o campo da psicologia social e seus mecanismos de construção dos comportamentos. Não se trata de reduzir a questão à cidadania, mas sim pensar nosso regime naquilo que ele tem de miséria moral.
A tese central de Oakeshott é: um dos grandes motores da democracia moderna é o ódio ao indivíduo e sua obscena capacidade de ser livre de modelos coletivos. Vivia o homem, na idade média, em sua pequena comunidade sem futuro, entre os terrores noturnos e as esperanças religiosas, quando foi despertado pelos sinos do sonho de virar o "senhor de sua alma", superando seus determinantes sociais. Hamlet e Jó têm alma. Quem apenas quer ser feliz não suporta a sina de ter uma alma.
Os processos "de salvação" sempre esmagaram os indivíduos reais porque a autonomia (substância dos indivíduos de fato) não é irmã da felicidade, não "salva" ninguém. E os idiotas só querem ser felizes. Os totalitarismos do século 20 já foram parte do surto. O anti-indivíduo adora certezas, causas e utopias. Goza sentindo-se parte de um todo.
Perdidos nos escombros de sua vila natal, nosso homem massa se reencontrou na obsessão de grandes coletividades identificadas com um ideal de mundo. A ideia do "bem público" tornou-se seu credo. A verdade é que o homem massa sempre fala em nome da liberdade, da autonomia, mas ele as detesta, porque teme o inferno que é a alma. As obras de autores como Kierkegaard, Nietzsche e Burckhardt (todos do século 19) são gritos contra esse ódio típico de quem é apenas sombra.
Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.
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30.5.09
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