Eu tomo café frio. Acho que deixo o café esfriar de propósito. Pelo esforço de tomá-lo. Há uma cota de sacrifício em cada gesto irrelevante.
Pego o café antes da cafeteira terminar de cuspir água. Queimo as mãos nas bordas, o caule da porcelana está boiando na fumaça. Momento perfeito para empunhar a xícara e degustar o charme do gole soprado. Ao invés disso, vou fazer novas tarefas. E o primeiro sorvo vem morno. Sou ansioso para me adiar.
Não adotei o pingado, lamento minha deserção. É delirante o dom de misturar certinho o volume, definir o que vai por cima. Uma autoridade maior do que enumerar as colherinhas do açúcar.
O amor não é expresso, é café-com-leite. Meio a meio, pouco a meio. Alguns preferem o leite; outros, o café. Por isso, combinam os dois.
Não sei se me faço entender: eu gostaria mais do café se viesse acompanhado do leite que não gosto.
Ninguém ama por inteiro. Eu amo e sou amado por fragmentos. No início da paixão, mostramos a região predileta: os dons e os dotes. Nossa parte benigna. Fácil decorar e pôr em prática.
É mais simples falar eu te amo quando não se ama. Quando vou falar eu te amo amando, o som não é natural. A boca pesa, a mão lateja, acredita-se em toda vogal. Nossa vida vai junto com os lábios de inverno.
Entendo agora: uma verdade que não se cansa é mentira. Portanto, amo de verdade e amo de mentira, para não deixar nada sem amar.
Não amo por inteiro. Amo por fases. Por dias. Por horas. Há incomodações, ódios e resmungos nos intervalos. Nivelar o amor é aniquilá-lo. É não admitir que a mulher não é o que espero, nem o que ela espera. E passar a desconfiar que não amo por aquilo que não preciso mesmo amar.
Procuro no amor a cegueira da paixão e os olhos já estão abertos nos dedos. Amar é suportar também não amar quem mais se ama. Lidar com o que nos irrita e não explodir. Dar a trégua para a paciência virar confiança. Não se sentir perseguido na hora da crítica. Não cortar a fala pelo passado. Não ameaçar com o fim, não interromper com chantagens, não sobrepor dissidências com suspeitas. Permitir que o rio mergulhe seus pés em nosso corpo.
O que julgava ser uma virtude - minha disposição em ajudar - pode ser compreendida como arrogância. Como se fosse cobrar um favor mais adiante. Ajuda só é ajuda no instante em que ela é esquecida. Tenho que ser suficientemente discreto para não voltar ao assunto. Nunca mais.
Meus avós maternos tomavam café-com-leite. Tão diferentes ao dormir, tão iguais ao acordar. O avô ainda separava abacates de seu quintal para a vitamina da tarde. Explicava, orgulhoso com o sotaque de cozinha: "o abacate é uma das raras frutas que amadurecem fora do pé".
Depende de uma semana longe da árvore. Como o amor. Inclusive quando não se ama.
Fabrício Carpinejar
arte: Paul Klee
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