CLÓVIS ROSSI pergunta em sua coluna do dia 8 de setembro, página A2, se no Brasil vivemos algo como o que acontece na vida universitária da Espanha hoje: desinteresse dos alunos e asfixia burocrática dos professores. Sim, há semelhanças.
Nos anos 50, o filósofo norte-americano Russel Kirk descrevia um fenômeno interessante nas universidades americanas.
A partir do momento em que a vida acadêmica se tornou objetivo da "classe média", gente sem posses, a vida universitária entrou em agonia porque a proletarização dos acadêmicos se tornou inevitável.
Dar aula numa universidade passou a ter algum significado de ascensão social. A partir de então o carreirismo necessariamente assolaria a academia, assim como assola qualquer emprego.
Cálculos estratégicos para garantia do emprego passaram a ocupar o tempo da classe acadêmica. E muita gente que vai dar aulas na universidade não é tão brilhante assim ou tão interessada em conhecimento.
O cálculo estratégico hoje passa pelo número de alunos que implica uma redução ou não de aulas e orientações de teses.
Ou mesmo nas públicas, onde você está mais protegido da proletarização imediata, uma verba maior ou menor para seu projeto e mais ou menos discípulos causarão impacto na renda final e na imagem pública.
Daí o desenvolvimento em nós de um espírito selvagem: o corporativismo em detrimento do ensino ou o ethos de gangues em meio à retórica da qualidade.
Muitas pessoas (alunos e professores) buscam a universidade não para "conhecer" o mundo, mas sim "para transformá-lo" ou ascender socialmente.
E aqui, revolucionários ("criando o mundo que eles acham melhor") e burgueses (interessados em aprender informática para "melhorarem de vida") se dão as mãos.
Este pode ser mais individualista do que o outro, mas ambos fazem da universidade uma tenda de utilidades.
Para mim não faz muita diferença, para a banalização da universidade, se você quer formar gestores de negócios ou gestores de favelas. Nenhum dos dois está interessado em "conhecer" o mundo, mas sim "transformá-lo".
É claro que nos gestores de favelas o espírito selvagem pode funcionar tão bem quanto entre os gestores de negócios. A obrigação da universidade em produzir "conhecimento de impacto social" é tão instrumental quanto produzir especialistas na última versão do Windows.
O utilitarismo quase sempre ama a mediocridade intelectual. Falemos a verdade: a mediocridade funciona.
Ela gera lealdades, produz resultados em massa, convive bem com a estatística, evita grandes ideias. Enfim, caminha bem entre pessoas acuadas pela demanda de sobreviver.
A instrumentalização é quase sempre outro nome para utilitarismo. Isso não quer dizer que devamos excluir da universidade as almas que querem ser gestores de negócios ou gestores de favelas -elas é que excluem todo o resto.
Precisamos dos dois tipos de almas, e cá entre nós, acho que os gestores de favelas são moralmente mais perigosos do que os gestores de negócios. Como todos nós, ambos irão para o inferno, a diferença é que os gestores de favelas acham que não.
E a asfixia burocrática? Ahhh, a asfixia burocrática! Esta contamina tudo e em nome da democratização da produção e da produtividade da produção.
A burocracia na universidade nasce, como toda burocracia, da necessidade de organização, controle, avaliação.
Não é um sintoma externo a busca de aperfeiçoamento do sistema, é parte intrínseca ao sistema. A pressão pela produtividade proletariza tanto quanto a pressão pela carreira.
Soa absurdo, caro leitor? Quer mais?
Em nome da transparência da produção, atolamos esses indivíduos de classe média na burocracia da transparência e do acesso à produção universitária.
Enfim, a "produção" asfixia a universidade em nome de uma "universidade mais produtiva, democrática e transparente em sua produtividade". Estamos sim falando da passagem da universidade a banal categoria de indústria de conhecimento aplicado, e sob as palmas bobas de quem quer "fazer o mundo melhor". Tudo bem que queira, mas reconheça sua participação na comédia.
Kafka, em seu conto "Um Relatório para a Academia", já colocava um ex-macaco, recém-homem, fazendo um relatório para os acadêmicos.
Ali ele já suspeitava que a academia continha algo de circo ou show de variedades. Hoje sabemos que isto já aconteceu.
Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.
19.9.09
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Um comentário:
Há muito já tinha notado isso, nesse círculo acadêmico, e gostei muito desta reflexão. Madura!
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