Hoje em dia, grande parte dos evangélicos — que jocosamente são chamados de bíblias por quem os vê carregando o livro de capa preta debaixo do braço — não lê as Escrituras, ou as lê muito mal. São raros os que estudam a Palavra de Deus com interesse, de modo contínuo e sistemático.
Mesmo alguns dos pregadores que vemos expostos na mídia, embora exibam a Bíblia aberta nas mãos para citar textos escolhidos sempre sem qualquer critério hermenêutico e frequentemente desentranhados do seu contexto, usam-na apenas no propósito de outorgar insustentáveis fundamentos a uma argumentação vazia de conteúdo exegético e teológico.
Entretanto, o empecilho mais prejudicial à fluida e proveitosa leitura bíblica, que de modo geral a transforma em letra morta e impõe empobrecedoras limitações ao alcance da Palavra de Deus, é o literalismo fundamentalista.
Lemos em Gênesis 26.18-19 que “Isaque tornou a abrir os poços que haviam sido cavados nos dias de seu pai Abraão, pois os filisteus os haviam entulhado depois da morte de Abraão; e deu-lhes os nomes dados por seu pai. E os servos de Isaque cavaram naquele vale e acharam ali uma fonte de águas correntes.” Ou seja: Isaque precisou desentulhar os poços cavados por Abraão, retirando tudo o que os filisteus ali acumularam ao longo do tempo, para poder reencontrar os mananciais, extrair água fresca e saciar sua sede.
Como se não bastasse o fato de lidarmos com os cascalhos naturais do texto bíblico (costumes da época, cenários sócio-culturais de então, a mentalidade oriental de determinados períodos históricos) — que, se não forem retirados com cuidado no processo de garimpagem e interpretação, costumam trazer notáveis prejuízos para a correta aplicação doutrinária e ética na vida dos leitores —, o fundamentalismo despejou nos poços das páginas sagradas uma enorme quantidade de entulhos, obstruindo o acesso dos leitores aos mananciais da Palavra de Deus.
Para não ir muito longe, basta lembrar que o conflito entre criacionismo e evolucionismo perderia muito da sua força se, em vez de lermos a Bíblia sob a funesta sombra da inspiração verbal ou do literalismo que a corrente fundamentalista insiste em preconizar, a questão fosse compreendida a partir de uma metodologia hermenêutica comprometida com a coerência, como a do método histórico-crítico.
Vale também para as Escrituras a advertência de Clarice Lispector: “já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”. A Bíblia, nesse sentido, constitui-se num livro de entrelinhas, e não de linhas. De princípios, e não de regras. De espírito, e não de letra.
A cartilha fundamentalista, que aqui veio parar através dos movimentos missionários oriundos do sul dos Estados Unidos, região em que o fundamentalismo mais se desenvolveu, ensina-nos a ler a Bíblia com suas lentes de estreita abrangência e foco obtuso. Resultado: a visão fica embaçada e, conseqüentemente, as imagens chegam deformadas.
Para compreender a Bíblia hoje, em face dos novos cenários e inéditos horizontes, faz-se necessário rejeitar as esgotadas fórmulas fundamentalistas de leitura. É preciso lançar fora as interpretações literalistas para aplicar com lucidez os ensinos bíblicos à vida atual. Convém superar as fronteiras reducionistas que herdamos de olhares rasos e medíocres. Exige-se a retirada dos entulhos para que as águas cristalinas da Palavra de Deus sejam redescobertas. Este é o nosso maior desafio.
A não ser que nos contentemos com bebidas artificiais, produzidas para o consumo ligeiro e o lucro fácil.
Há quem goste delas. E, dependendo dos seus nefastos intentos, até as prefere em lugar das autênticas fontes de água viva.
Carlos Novaes
dica do David Curty
8.11.09
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