“Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada.”
Passei o dia pensando nesta frase que abre o livro Terra sonâmbula, do Mia Couto. Continuando, o autor diz que “pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras”.
Aí, me lembrei de um homem que vive aqui perto de casa, sempre sentado num canto da calçada, preto e sujo, com uma barriga inchada e redonda. Me lembrei também da velha envergada que mastiga a própria língua. Se você oferece a ela algum trocado, ela o recusa. É aquele tipo de miserável somente aos nossos olhos. Quando tentei lhe dar uma nota de dois reais ela me disse com sua boca murcha e voz frouxa que já havia almoçado. Eu perguntei: E amanhã? No que ela respondeu: Amanhã é outro dia.
Mesmo velha, doente e envergada, com a coluna vertebral parecendo um gancho de tão torta, se gabou em dizer que trabalha limpando cocô de pombo na casa de uma madame. Nunca mais a importunei. Nem ela, nem outro que eu julgue miserável.
Quando caminho pelas ruas, não há hienas, mas esses e outros perdidos que mesmo cercados pela multidão estão invisíveis e percorrem as ruas da cidade como se fossem estradas desertas, focinhando entre a poeira e a desolação.
Muitas vezes ao vê-los, parecem mesmo estarem em outro tempo, vivendo uma espécie de calamidade pós-apocalíptica. Às vezes imagino que esses homens, mulheres e hienas vivem no futuro e é para lá que vão todos os que percorrem as ruas.
Ana Paula Maia, no Vida Breve.
ilustração:Tereza Yamashita
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