HÁ PROFISSÕES que podem ser aprendidas na escola, de fora para dentro. E há profissões que já nascem com a gente e não tem jeito de ensinar; só é possível despertar. Isso vale para professores e educadores -e até criei duas metáforas: os eucaliptos, que se produzem em série, todos iguais, fazendo ordem unida como soldados, e os jequitibás, árvores selvagens e solitárias que nascem no meio da floresta sem que ninguém as ensine a serem árvores...
Dentre os muitos jequitibás que conheci, está uma mulher. E fiquei conhecendo sua alma de educadora de um jeito curioso. Nova numa cidade, ela precisava escolher uma escola para os seus filhos. Foi então visitando as escolas, umas após as outras, e era sempre a mesma coisa. As diretoras e diretores pensavam que ela estava em busca de uma escola que prometesse aprovação no vestibular com apertos, sofrimentos e 100% do uso do tempo. Mas ela estava em busca de uma escola em que os seus filhos descobrissem o fascínio e a alegria de aprender.
Ela encontrou a escola que procurava, os filhos cresceram, se formaram, tornaram-se profissionais e bateram suas asas.
Seus filhos se foram, mas uma coisa não foi. Ficou. Ela, jequitibá. Eucalipto, chega um tempo, é aposentado, cortado, transformado em dinheiro. Mas os jequitibás não se aposentam. Até morrer de velhice, eles querem oferecer sombra para crianças e professores.
Aconteceu, então, que muitos jequitibás se encontraram e resolveram se transformar numa floresta com o propósito de ajudar escolas que precisassem. Foi numa escola pobre lá na zona leste, na Vila Matilde. Foi assim que me contaram.
"Fomos lá a pedido da antiga diretora -ela tinha um jeito de jequitibá!- , impotente diante da enormidade dos problemas a serem resolvidos. O que vimos, ao entrar, foi uma escola simples, como qualquer escola pobre de periferia. Mas a maneira como fomos acolhidas fez toda a diferença. Sentimos que havia verdade e esperança no ar."
Aquela era a escola que tanto buscamos encontrar para implantar o projeto a que demos o nome pomposo de "Saúde Mental de Mãos Dadas com a Escola"!
Demo-nos conta de que a necessidade mais importante e urgente era canalizar toda aquela pulsão de vida e trazer o olhar de professoras, crianças e funcionários para o prazer. A alegria faz bem à inteligência. E as crianças e os adolescentes precisam de pouca coisa para se sentirem felizes.
Surgiu então a ideia de um coral! Quando falamos nisso, foi aquela explosão de risos. Um aluno, da turma dos "difíceis", mencionou o orgulho de seus pais vendo-o cantar num coral! Mas queríamos coisa que valesse a pena, não um corinho qualquer. Lembramos da Osesp e o fantástico maestro Abel Rocha foi contatado.
Ele foi nos encontrar e quanta paciência ele teve em nos escutar e conhecer o que pretendíamos. E o nosso projeto também o conquistou. Arranjou-nos dois regentes, jovens, competentes, seus assistentes, e demos início ao nosso tão esperado e festejado coral.
A apresentação estava marcada para o meio de dezembro. Mas, por razões de ordem superior, parece que de ordem burocrática e administrativa, o projeto foi interrompido. Uma ventania soprou pra longe o jequitibá e, com ele, foi-se o coral...
Parece que existe sempre um conflito entre as regras da burocracia e as florações da vida. Gaiola não gosta de passarinho solto batendo asas... Foi isso que Kurosawa fez representar no seu comovente e profundo filme "Viver".
Mas é certo que os passarinhos engaiolados jamais se esquecerão da beleza que é cantar em liberdade...
Rubem Alves
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