20.2.10

O sacrifício filial

Meu pai se separou da mãe quando tinha sete anos. A saudade apertava. Tanta saudade que conversava com as roupas dele. Criava diálogos imaginários com seus bonés, com suas gravatas, com suas camisas listradas. Eu me trancava no armário, dormia entre seus casacos, o desespero brinca com qualquer lembrança, eu entendia que dormir ali significava subir de novo em seu colo.

Mas minha mãe não me contou que o casamento dos dois acabou. Ficou no ar. E não perguntava para evitar o choro. A dor nos proíbe de falar certos assuntos.

O que ouvi é que o pai simplesmente viajou. Havia a expectativa de que ele pudesse voltar a qualquer momento. A qualquer hora. Como uma loucura que se cansa. Como um trabalho que se termina. Até hoje olho a porta por hábito, minha esperança não é de um homem, mas de um cão. Farejo as frestas e vou latir para a campainha.

Eu protegia minha mãe porque jurava que ela tinha sido enganada pelo destino. Que a vida não tinha sido justa. Que o pai nos esqueceu. A espera se transformou em resignação e migrou para uma raiva silenciosa.

Não calculo bem se me tornei um menino obediente por mim ou por ela. Não ansiava atrapalhar, somente isso, e talvez tenha me anulado. Fui mais fixo e previsível do que uma mesa de jantar. Odiei meu pai durante anos para ser fiel à mãe. Depois odiei minha mãe para conseguir me reconciliar com o pai.

Nunca escapei daquilo que não foi dito. Careci de alguém que nomeasse exatamente o que aconteceu. Uma frase me contentaria:

- Eu e seu pai nos separamos e vamos continuando criando vocês em casas diferentes.

O subentendido me apavora, tremo diante de silêncios longos.

Não pretendo levar, portanto, minha filha a me repetir e decorar meus problemas com flores.

Ela ama sua mãe. Reclama, lamenta a ausência de compreensão, mas nunca irá morar comigo. Por mais que insista, acredita que me viro sozinho. Ama com veemência, com determinação, pode dedicar toda sua vida para provar que sua mãe não está errada. Não duvido que consiga.

É o sacrifício de Isaac sendo reencenado ano a ano, família a família.

Eu admiro minha adolescente, admiro os filhos que desculpam sua mãe tentando ser iguais a ela. É uma renúncia espartana, uma oferenda secreta. Não é fácil, não é pouco. De repente, escolhem uma carreira, casam, tomam uma atitude que não aceitariam por desejo próprio, somente para abençoar um exemplo. É um agrado involuntário. Para ficar do lado delas. Para defendê-las da verdade.

Apagam suas vocações, suas biografias, suas aspirações para concordar com a educação que receberam, mesmo sabendo que poderia ser diferente. As explicações para o abandono de sonhos serão idênticas as alegações maternas. Para dizer que sua mãe não estava enganada, vão largar o balé, o futebol, o cinema, a música, a literatura. Oferecem um amor sem limites e, conseqüentemente, sem personalidade.

Amargam um dilema: ou discordam com o enfrentamento (e uma grande dose de traumas) ou apóiam tentando conservar aquilo que foi ensinado. Não serão filhos, mas advogados, elogiados quando concordam no ato, incentivados quando obedecem. Não questionam a versão oficial, confiam em absoluto nas descrições do berço. É fácil descobrir quando isso acontece: as histórias são mais sentimentos do que fatos, mais suspeitas e impressões do que lembranças.

Há mães que não entendem que os filhos não são iguais, nem devem. Não cortam o cordão umbilical. Não alcançam à ideia de que a felicidade é pessoal. Aquilo que pode me deixar eufórico, por exemplo, é capaz de deprimir o outro. Pensam assim: "tudo que foi bom para mim será bom para o meu filho". Não respeitam diferenças de idade, carências, temperamentos diversos. Anulam a época, as mudanças de costumes, as conexões da linguagem.

Se a mãe estudava seis horas por dia, o filho também terá que seguir a mesma receita. Se ela namorou tarde, não custa o filho esperar mais tempo. Se trabalhou cedo, permanecer no quarto é vadiagem. Se a moda é secundária, o filho não depende de nenhum luxo, usará somente o básico. Se ela dorme cedo, nada de luz acesa de madrugada. Se não gosta de música, som alto é barulho. Se não viveu com pai, o filho tampouco necessita.

É óbvio que a casa explodirá em brigas, censuras e castigos. Não existe modo de convencer a criança a fazer do nosso jeito. Porque a ditadura vem da falta de escolha, uma simples mudança de costume surgirá como uma birra, uma afronta inaceitável. Dar o exemplo não é ser o exemplo.

Essas mães, como a minha, como a sua, como a de qualquer um não fazem por mal, ainda não descobriram que podem mudar o passado e repetem suas mães para provar que elas também não estavam erradas. É um efeito dominó, longe de um fim.

Por mais alguns anos, suportarei a distância de minha filha. Mas não quero sua dependência para me sentir importante, quero sua independência para que ela seja importante.

Fabrício Carpinejar, na revista Crescer.
arte: Andrea del Verrocchio

Um comentário:

Roger disse...

Isso sempre me faz pensar que o amor é 'mais em cima'... amamos, nós pais (tenho 2 bebês, de verdade, rs), mas com amor distorcido... até aí, nada de mais (somos humanos)...

O problema é fazermos do amor de pais e mães, esse símbolo folclórico do amor perfeito... que acaba gerando pais sequestradores (desse amor) e filhos prisioneiros (do mesmo)...

Uma verdadeira 'síndrome de Estocolmo famíliar'...

Perfeito mesmo, só o amor do Pai.

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