20.2.10

Capitalismo de desastre

Logo depois da passagem do furacão que esmagou New Orleans, o guru capitalista Milton Friedman (falecido em novembro de 2006), sugeriu que havia ali a oportunidade de eliminar-se o sistema de escolas públicas da cidade, substituindo-o por escolas privadas construídas com subsídio do governo. Sua sugestão foi abraçada por empreendores e colocada em prática com recursos que teriam de outro modo sido aplicados no auxílio direto às vítimas. Enquanto o trabalho de reparo dos diques andava a passo lento, o sistema (agora privado) de educação da cidade era concluído em tempo recorde. Antes do Katrina havia 123 escolas públicas em New Orleans; hoje em dia há quatro.

Naomi Klein:

Por mais de três décadas [Milton] Friedman e seus poderosos seguidores têm aperfeiçoado esta mesma estratégia: aguardam uma crise de grandes proporções, depois vendem porções do estado à iniciativa privada enquanto os cidadãos estão ainda recuperando-se do choque, tornando rapidamente essas “reformas” permanentes.

Em um de seus artigos mais influentes Friedman articulou o cerne tático da panacéia capitalista contemporânea, aquilo que passei a entender como doutrina de choque. Ele observou que “somente uma crise – real ou percebida – produz verdadeira mudança. Quando essa crise ocorrer, as ações a serem tomadas dependem das idéias que estiverem circulando naquele momento. Essa, creio, é nossa função básica: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantendo-as vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável”. Friedman estava convencido de que quando uma crise ocorria era crucial agir com rapidez e impor mudanças velozes e irreversíveis antes que a sociedade devastada pela crise resvalasse novamente na “tirania do status quo”. Ele estimava que “uma nova administração tem de seis a nove meses para implantar mudanças de grande monta; se não age de forma decisiva nesse período, não chegará a ter outra oportunidade”. Variação do conselho de Maquiavel de que danos devem ser infligidos “todos de uma vez”, essa provou ser uma das mais duradouras de Friedman.

Chamo esses ataques orquestrados contra a esfera pública no rastro de eventos catastróficos, combinados ao tratamento de desastres como estimulantes oportunidades de mercado, de “capitalismo de desastre”: disaster capitalism*.

Não falta quem observe que uma versão de espetaculares proporções da aplicação desta doutrina está ocorrendo neste preciso momento no Haiti.

* Naomi Klein, The Shock Doctrine, Metropolitan Books, 2007

Paulo Brabo, em A Bacia das Almas.

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