6.2.10

Quando o que deve libertar nos aprisiona

"Quem vive no medo precisa um mundo pequeno , um mundo que pode controlar."
Kindzu, personagem de Mia Couto

Existe um fenômeno religioso, chamado pelos antropólogos de “Culto a Carga”, que surgiu em sociedades primitivas quando estas entravam em contato repentino com uma civilização avançada e industrializada.

Nestas sociedades tribais os nativos observavam os grupos industrializados guardando material de encomendas ou cargas (como por exemplo grupos militares recebendo suprimentos por barcos e aviões) e, não compreendendo sua origem, atribuiam-nas a causas sobrenaturais. Daí o “Culto a Carga”.

É curiosíssimo que alguns grupos chegavam a imitar, ritualisticamente, a forma de andar e vestir dos grupos industrializados, na esperança de receber também a “carga” destas entidades sobrenaturais.

Há registros de tribos que abriram clareiras na selva imitando aeroportos e construindo rádios, fones de ouvido e inclusive falsos aviões de madeira que serviriam como isca para chamar supostas entidades sobrenaturais. Outras fabricavam uma espécie de talismã imitando rifles, feitos na realidade de madeira, com o requinte da inscrição “USA”.

Esse fenômeno já foi observado diversas vezes isoladamente. O primeiro caso que se tem registro foi o movimento “Tuka” nas ilhas Fiji em 1885, mas outros casos ocorreram periodicamente nas ilhas da Oceania.

No contato de índios norte americanos e a população americana de origem européia há o registro de um profeta paiute chamado Wovoka, que pregava que os ancestrais voltariam como ferrovias e uma nova terra cobriria os homens brancos. Índios amazonenses esculpiram fitas- cassete em madeira, com as quais fariam contato com espíritos.

Durante a Segunda Guerra, vários casos ocorreram quando nativos tiveram contato com os exércitos dos dois lados, ao encontrarem equipamentos jogados de pára-quedas para equipes no solo. O Culto a John Frum ainda existe até hoje na ilha Tanna, Vanuatu.

Esse tipo de crendice pode soar um tanto risível, mas não é incomum que pessoas e grupos passem em determinado momento a cultivar alguma espécie de pensamento mágico.

Na psicologia e ciência cognitiva, o pensamento mágico é um raciocínio causal não-científico, como por exemplo as superstições. James Frazer e Malinowski disseram que as sociedades com crenças mágicas freqüentemente têm crenças e práticas religiosas em separado, e que, paradoxalmente, a magia assemelha-se eventualmente mais à ciência do que à religião. A magia preocupa-se com relações causais da mesma forma que a ciência, mas não distingue a correlação da causalidade. Por exemplo, alguém pode acreditar que uma camisa dá sorte se ganhou um torneio esportivo quando a vestiu. A pessoa continuará usando a mesma camisa e, embora ganhe algumas e perca outras competições, continuará a creditar suas vitórias à “camisa da sorte”.

Então me pergunto: em que momento a religião, o misticismo e mesmo a ciência começam a aprisionar ao invés de libertar? Em que momento as idéias que elegemos como crenças e convicções criam grades e nos encerram em gaiolas de medo, ao invés de nos fazerem voar?

Tenho para mim que quando a religião aprisiona, não tenho religião. Também não acredito piamente na ‘ciência pura’ , mesmo após 20 anos praticando a Medicina, ciência aplicada. Não acredito em fadas e duendes, não acredito em Darwin ou no moderníssimo Richard Dawnkins como ditadores de verdades absolutas. Freud, Lacan, Kant e Cioran me encantam, mas não me convencem.

Tampouco prego o humanismo secular, o racionalismo ou naturalismo. Não tenho a intenção de fazer apologética de crenças – ou da falta delas – para aliviar tensões mentais.

Acredito em questionamentos honestos e saudáveis. Acredito em proposições que nos tirem do comodismo e das respostas prontas e enlatadas. Respeito com sinceridade a consciência da individualidade de cada pessoa. Simpatizo profundamente com quem me diz: “Não sei, ainda não sei.”

Talvez a intenção desse texto seja somente uma leve provocação, um grãozinho de areia na sola do sapato das nossas ‘profissões de fé’.

É como nos dizia – marotamente – aquele chatíssimo e esperto professor de Fisiologia, lá nos tempos da Faculdade: “O que vocês acham mesmo?”

Helena Beatriz Pacitti, no Timilique!

3 comentários:

Chicco Salerno disse...

Me fez lembrar ainda do próprio apóstolo (o da verdade!)Paulo, quando no Areópago em Atenas, trocando idéias com os filósofos epicureus e estóicos inicia seu discurso afirmando: "...Varões atenienses, em tudo vos vejo um tanto s u p e r s t i c i o s o s" [At 17:22 RC]

Enquanto a superstição prevalecer sobre a verdade, Religião e Ciência caminharão antagonizando-se, e o Culto da Carga encontrará sempre mais adeptos.

É o que temos visto dentre os religiosos das várias correntes ou mesmo dentro do cristianismo, é o que temos visto dentre aqueles que professam ser cientistas também.

O que presenciamos nada mais é que a superstição levada a extremos vestida de cores do saber e da fé.

Camilo disse...

Caramba! que texto gostoso de ler...

Então, esse tipo de fé produzido pelas catedrais macedina e afiliados não passa de movimento do tempo ameninado da consciencia!

Will disse...

Muito bom! Puta leitura agradável.

Lembrei do Gondim: Creio, mas tenho dúividas.

:)

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