É quando um rosto deixa de ser visto de longe, não é mais o que os outros enxergam.
Não é uma estampa, um mapa dividido, uma varanda de correr. Um cartaz, um volante, um livro. Um continente numa garrafa de vodka.
Não é um ponto fixo de táxi. Um embarque.
Não é uma parada de ônibus: conversar com o meio-fio enquanto espera, empurrar os papéis para a boca-de-lobo.
Um rosto que se torna uma pintura quando se procura uma fotografia. Um retrato antigo, de família. Um retrato pintado na sala de estar, entre ir e vir. Você vai perguntar as horas ao retrato como se faz a um relógio no caminho ao quarto.
Um par de olhos diferente daquele que antes acompanhava à distância. Um par de olhos que não tem mais como espiar ou abandonar ou fingir lonjura. Um par de olhos que nem parece piscar, porque coincide com a angústia afetiva de suas pálpebras. Que se infiltra nas suas pausas e adoece da inclinação dos arroios.
Você não vai mais ler com desapego e rapidez, mas sibilar lentamente o pulmão. Estará soletrando como uma criança espantada. Ou suspirando como um velho cansado. Tomará café frio para não se espalhar com a fumaça.
Melhor seria não ter apanhado aquele rosto, segurado aquele rosto com as duas mãos. Você não pensou nas conseqüências. Você agora não pode se desvencilhar da própria força de seus braços. Foram para o rosto. Para aquele rosto.
Quando isso aconteceu, você acreditava que bastava soltar o rosto, colocar de volta no lugar que o encontrou, mas não havia mais lugar, você alterou o rosto quando o segurava.
Não é um rosto que pede, é um rosto que aceita o que ainda nem alcançou. Um rosto que altera a medida da carne.
Você será atrapalhado depois. Os objetos vão cair com facilidade. Enfrentará constrangimentos. Derrubará copos e pratos e talheres. Ficará irritado com a desproporção dos gestos. Não percebe que carrega aquele rosto no colo de seu rosto e o peso de sua boca mudou.
Um rosto sobreposto ao seu, papel vegetal das aulas de geografia. Cuidará para não colorir fora das linhas.
Apesar de descrevê-lo, é capaz de não reconhecê-lo mais na rua ou nas fotografias. Capaz de confundi-lo como um desconhecido faria, um esquecido faria, um idiota faria. Excesso de intimidade é uma estranheza.
Você somente vai reconhecê-lo quando ele se aproximar novamente.
Um rosto costas de seu rosto. Confuso porque está colado ao seu, com dobras de fruta.
É um rosto tão rente que poderia ser luva aos seus olhos no inverno, poderia ser boina aos seus cílios no outono, poderia ser pescoço para o sol deslizar pela nuca. Um rosto que não é mágoa de luz, mancha de roupa. É uma delicadeza respiratória sobre sua ânsia. Uma penugem loira sobre sua pele.
Enxergar quem amamos é não mais enxergar a si mesmo. É duplicar a ausência.
arte de Magritte
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Um comentário:
Fabuloso AMOR Fabrício Carpinejar.
Sempre incisivo no coração.
Abraços pra ti.
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