Desentendo as panelas.
Misterioso o sumiço de suas tampas. Uma sina de guarda-chuva, de luvas, de meias, de canetas, das palhetas de guitarra. Somem sem aviso e bilhete de suicida. Escapam de seus pares. Desertam do exército.
Vou procurar a panela debaixo da pia e não cato seu complemento. Os encanamentos rindo de mim, espumando detergentes. Arrumo, desarrumo, e nenhum vestígio. E já tenho que improvisar um novo chapéu, que é maior do que a borda. O conjunto termina desengonçado tal funil na cabeça do homem de lata. E depois não procuro mais, ressentido com o quebra-cabeça incompleto.
Ainda deveria ser feito um estudo da falta de fidelidade das panelas. Por que elas não são monogâmicas?
Diferente do caderno de capa dura, pautado pela lealdade. Lembro das aulas em que tinha que arrancar a folha para repassar ao professor no final do período. Não imaginava que ele exigiria a correção. O dilema posto na mesinha verde: ou entregar ou ficar sem nota.
Triste o sacrifício, o capricho violado, o esforço de pontilhar o corte, reduzir o estrago usando régua ou um livro como apoio. Eram folhas duplas, rasgar uma significava comprometer a costura, deixar solta a folha no outro extremo, afrouxar a cintura do conjunto, corromper o elástico. A ilha da tinta desapareceria no mar. Não duraria nem mais um mês.
Minha memória não é a de um caderno-espiral, para distribuir e censurar as confissões, mentir sua extensão e abreviar o conteúdo. É de um caderno capa dura. Não consigo apagar uma lembrança, mesmo que seja dolorida ou humilhante ou os dois. Muito menos alterar seu número de páginas conforme as necessidades da relação. Não sou de riscar o que aconteceu para parecer mais maduro, ou eliminar as contradições e simular coerência.
Inclino-me a conviver com as rasuras e insatisfações. O branco do corretivo sempre me irritou mais do que a mancha violeta. Alterar é disfarçar a carência. Alterar é fingir o que não foi vivido, antecipar o que não era hora. Falsificar-se compulsivamente.
Não irei me vingar com as cinzas, arrancar as folhas que não combinam comigo, ou que me provocaram decepções. Não serei visto queimando fotografias, cartas e paixões numa lata de lixo, apenas porque não me servem mais. O que namorei vai me enamorar a vida inteira. Estará lá numa página definida, permanente, com a letra segurando as linhas.
Todos os meus erros são esperançosos pela releitura.
Fabrício Carpinejar
imagem: caderno do Vicente
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