26.7.08

Agora e na hora da nossa morte

Todos fingem que não vão morrer. O professor americano Randy Pausch não tinha mais motivos para continuar fingindo. Descobriu um avassalador câncer no pâncreas, com metástase em órgãos vitais. Casado, de 47 anos, pai de três filhos, contava com - no máximo - seis meses de vida.

Lecionando Ciência da Computação na Universidade Carnegie Mellon na Pensilvânia, usou o recurso acadêmico da aula de despedida para elaborar uma síntese socrática de sua trajetória. A conferência em setembro de 2007 teve uma platéia de 400 ouvintes, que lotou o auditório da universidade. Inesperado foi o efeito dominó de suas crenças. Mais de 2 milhões de pessoas assistiram ao vídeo no YouTube.

Com ajuda do colunista Jeffrey Zaslow, do Wall Street Journal, Randy colocou seu testemunho em papel. Durante 53 passeios de bicicleta, conversava com o jornalista pelo fone do ouvido do celular, que distribuiu os ensinamentos e as histórias no livro A lição final, lançado aqui pela Agir e que desponta na lista dos mais vendidos no The New York Times.

Ter um prazo impulsionou Randy Pausch a reavaliar seu passado. Entre a extinção silenciosa e o adeus espalhafatoso, escolheu o segundo e optou por se despedir do jeito que gosta e mais sabe: dando aula. Suas declarações recebem a aura de testamento, com o agravante diferencial de analisar a própria vida e dos próximos sob o ângulo da morte. Não são quaisquer palavras, são suas últimas palavras, sem tempo para acrescentar algo ou melhorar a experiência. Como ele mesmo diz: "Não podemos trocar as cartas que recebemos, mas apenas pensar como jogar."

Ele se retira no auge da carreira, fundador do projeto Alice, software que ensina linguagem de programação para crianças, e tendo no currículo parcerias com grandes empresas como Adobe, Google, Eletronic Arts e Walt Disney. Além disso, sua casa desmorona com a proximidade de abandonar três filhos pequenos: Dylan, 6 anos, Logan, 3, e Chloe, 1.

A Lição Final é uma obra de auto-ajuda como nunca se leu. Uma nova frente nas estantes. Pois não é um depoimento tradicional de quem superou o fim e se presta a conceder a cronologia da obstinação e superação. Ele não venceu a morte, mas aprende a aceitá-la e admite (o pior) que depois disso não poderá aprender mais nada. Trata-se, portanto, de uma ária de serenidade, com tudo o que tem direito, sentimentalismo, nostalgia, choro seco, e a pontada imponderável de injustiça (por que foi acontecer comigo?), mesmo quando nada mais se tem a explicar.

Não é literatura, capaz de ultrapassar as circunstâncias da doença e atingir a luminosidade estética, como se percebe em Antes Que Anoiteça (Record, esgotado), autobiografia do cubano Reinaldo Arenas (com a saúde debilitada pelo vírus HIV, ele se mata logo após o término do livro). Acima de tudo, representa uma carta de despedida para a família. Sincera, coloquial e sem nenhuma revelação mágica. Talvez se critique a espetacularização circense da tragédia. Circo sim, porém Randy Pausch não é previsível em sua exibição derradeira, ele concilia o papel de clown com o salto mortal do trapezista.

A Lição Final está encharcado de clichês, tirando vantagem do imperativo de "falar a verdade" (o que é diferente de falar bem). Torna-se algo como um epitáfio comentado. Destrincha um breviário de conselhos edificantes e ingênuos, como "o tempo deve ser administrado com precisão, assim como o dinheiro"; "é sempre possível mudar de plano, desde que se tenha algum"; "pergunte a si mesmo se está gastando tempo com as coisas certas"; "desenvolva um bom sistema de arquivos"; "repense o telefone"; "delegue"; e "tire férias".

Converte o momento extremado numa odisséia de boas maneiras, hierarquizando regras para uma conduta profissional exemplar. Soa estranho dentro da freqüência confessional. Substitui a sondagem religiosa pela praticidade das ambições. Pratica uma espécie de consumismo de princípios.

Da mesma forma, desenvolve aquele conhecido apelo otimista da importância de cumprir os desejos. O professor comenta um por um dos seus sonhos de pequeno, a maioria realizada como ser autor de um verbete da enciclopédia World Book, flutuar em gravidade zero, trabalhar na Disney e conhecer o capitão Kirk; e outros não, como jogar na Liga Nacional de Futebol Americano.

Afora a panfletagem de hospital, o volume tem méritos. Evita uma obra pesada, infiltrando sua emoção pelos flancos do humor, não abdicando da irreverência e desembaraço para contrabalançar o coitadismo. Assim como alcançou em sua memorável palestra. Enquanto Pausch apresentava cientificamente as suas tomografias, realizou exercícios de flexões para mostrar a sua contraditória saúde momentânea. Ou quando começou a contar, tal criança no jogo dos sete erros, o número de seus tumores na imagem do computador (dez!), e somente lamentou a falta de preparo médico pela ausência de lenços no consultório.

Com objetividade, o autor pretende afastar o sentimento de adulação que envolve o doente terminal. Narra, por exemplo, sua insatisfação com a tolerância planejada de sua mulher Jai diante de seus defeitos. "Eu espalho tudo. Minhas roupas, limpas e sujas, ficam espalhadas pelo quarto, e a pia do banheiro, repleta delas. Isso enlouquece Jai. Antes de minha doença, ela reclamava. Mas a dra. Reiss aconselhou-a a não deixar que pequenas coisas nos perturbassem."

Quando Randy Pausch é mínimo, avulta-se singular. Quando ele busca ser grande, apaga-se na redundância. Os acertos surgem da especificidade das vivências, sobrepujando o tom genérico de mapa da felicidade. Podem ser encontrados na mensagem legada aos seus dois meninos e menina, quando ele evita projeções e pede para não tentarem imaginar o que ele gostaria que se tornassem. Ou em frases que incluem o fracasso como rascunho. "Adquire-se a experiência quando não se consegue o que se queria." Também presente nos momentos líricos, singelos. Não é boba a dica de carregar um toco de giz de cera no bolso para lembrar o cheiro da infância. Ou quando ele explica que a sua mulher bateu o carro e não mandaram para oficina, pouco se importando com o status social. "Nem tudo precisa ser consertado."

A proximidade da morte transforma sua perda em ganho. Não fazer o que deixou para trás, gerar sentido ao que ficou. Na hora de somar, a fé multiplica as lembranças.

O livro inspirou meu texto Livrarias à beira da morte. Randy Pausch (47) morreu nesta sexta-feira (25) em sua casa no sul da Virgínia (EUA).
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