30.9.08

Andréia

ANDRÉIA SENTIA calor. Por isso usava roupas leves. Estudou ciências sociais e administração porque, apesar de querer mudar o mundo, sabia da dificuldade de sobreviver como socióloga. Ao formar-se, vinda de uma boa faculdade, logo arranjou emprego.

No início temia o mundo de gente grande. Mas, rapidamente, inteligente como era, abriu espaço no inferno da vida cotidiana profissional. Andréia tinha um noivo. Ele era dedicado, fiel e amoroso. Não era um desses machistas que mandam nas mulheres. Dialogava sempre, buscando uma relação saudável.

Eis que entra em cena seu chefe, homem maduro e dono do mundo do qual ela deseja fazer parte. Casado, era conhecido por ser um perigoso sedutor. Apesar da fama, nenhuma prova contundente existia contra sua conduta. Pelo contrário, amava sua mulher. As "informações" permaneciam entre o desejo e a inveja. Afinal, ser sua amante poderia decidir uma carreira.

A idéia de que homens e mulheres misturassem sexo e carreira profissional parecia errado aos seus olhos. Andréia sentia um estranho mal-estar diante dessa fofoca. Mas por que se sentir mal com isso, se ela não se considerava uma moralista?

Treinada nas modernas técnicas sociológicas para identificar a ideologia machista, sabia que devia manter distância do suposto sedutor. Mas não porque tivesse medo dele. Sentia-se imune. Nunca cairia no lugar de objeto sexual porque esse desejo de ser esse objeto era a ideologia machista.

Infelizmente, o pior estava para acontecer. A primeira manifestação do pior foi uma preocupação inesperada com a beleza. Um dia em especial foi muito difícil: o dia da comemoração de um novo e arrasador cliente.

Em meio a bebida, cigarros e risadas, Andréia conversou com o chefe por horas. Ele tinha o dom de fazê-la sentir-se pairar acima do bem e do mal. Chegada a hora de encerrar a festa, Andréia foi tomada por um estranho desejo de que aquela conversa se estendesse indefinidamente.

O chefe, a uma certa hora da noite, de modo displicente, afastou-se dela e se pôs a conversar com outras pessoas, sem mesmo dizer "até segunda-feira".

No final de semana, irritada, ela cancelou uma viagem à praia com o noivo e inventou uma gripe. Passou horas ao telefone com uma amiga conhecida por ser especialista em amor e sexo. Após várias experiências amorosas fracassadas, sua amiga sentia-se uma especialista em homens. No fundo, era uma rancorosa. "Fique longe desse cara!", disse a amiga a ela.

Na segunda-feira, Andréia perseguiu obsessivamente os detalhes nos olhares e nos atos daquele homem que parecia estar para além do bem e do mal. Fracasso total, a indiferença dele parecia evidente. Nenhum olhar cruzado, nenhuma palavra. Isso piorou seu mal-estar.

Alguns dias depois, foi chamada à sala dele. Andréia, nervosa, obedeceu. Ao entrar, ele falava ao telefone. A secretária fechou a porta e saiu. Andréia permaneceu de pé e percebeu, de repente, que estava com uma saia talvez excessivamente curta.

Ele parecia não vê-la. Desligou o telefone e mandou que ela sentasse. Contou que o novo cliente implicaria viagens constantes e que ela deveria acompanhá-lo. À medida em que a conversa avançava, um calor subia das pernas ao rosto, como se o mundo fosse um inferno.

Naquele instante, a secretária bate na porta, abre e avisa que o noivo dela estava ao telefone. O chefe, generoso, manda que ela transfira a ligação para a sala dele e estende a mão para ela com o telefone. Andréia inclina-se sobre a mesa e a desordem de papéis que ali reinava. Começa a falar com o noivo. Alegre, ele contava que achara o apartamento que eles procuravam.

O chefe levanta-se e tranqüilamente começa a mexer em uns papéis numa mesa atrás dela. Andréia mal ouvia seu amável noivo. Percebia, sim, cada passo do homem que pairava atrás dela e acima do bem e do mal. A voz dela falha. Ele pergunta: "Tudo bem?". Ela sorri.

Ela desliga o telefone, ele fala que os próximos passos seriam dados para a primeira viagem ao exterior dos dois. Andréia volta para sua mesa angustiada. O coração tomado por uma felicidade brutal.

Ela sabia que estava sendo tocada por algo maior do que ela, algo de ancestral. Pela primeira vez se sentia uma mulher de fato. Se alguém perguntasse quem era seu noivo, ela, sem culpa, diria: "Não sei". Na noite quente, o corpo suado escorria sobre a cama. Na alma nem uma gota de medo, só coragem.

Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.

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