9.9.08

O silêncio na senzala

NELSON RODRIGUES é um clássico, como todo clássico, é um espelho. Os "idiotas" não gostam dos clássicos. Preferem a moda, diria ele. Vê-lo como o "transgressor da hipocrisia da classe média" é vê-lo pela metade.

Eis o que quero dizer: ele seria varrido da vida intelectual hoje porque dos anos 70 pra cá as coisas pioraram muito entre nós. E imagine o leitor, que vivemos em tempos democráticos: a palavra "liberdade" enfeita nossa ética de coquetéis.

Aliás, como ele diz "a palavra liberdade já foi tão abusada por cretinos de todos os tipos que não deveria entrar em casa de família".

Nelson percebeu, em meio à asfixia grosseira da ditadura, uma outra forma de asfixia que se formava no horizonte: a repressão contra quem não partilha de certas idéias que em sua época já mostravam o rosto. Como afirma ele na Cabra Vadia, "é necessário ser um ex-covarde" pra dizer o que ele diz em suas "confissões", agora completas com o lançamento do Reacionário pela editora Agir. No texto, suas repetições ganham a forma de personagens do cotidiano.

Essas "confissões" narram a vitória dos idiotas sobre a experiência da agonia que é a inteligência. A tendência a condenar ao silêncio aqueles que discordam da unanimidade burra já é percebida por ele quando comenta os 70 anos do sociólogo Gilberto Freyre. Por recusar o manto do falso profeta Marx ("o marxismo desaparecerá em 15 minutos") e a mentirosa afirmação de "que somos todos iguais", Gilberto Freyre é condenado pelas "estagiárias de calcanhar sujo" e sua inteligência hippie. O que caracteriza o comportamento dessas "estagiárias" é afirmar que o jornalismo deve salvar o mundo, calando as vozes de quem elas não gostam. Na vida real só conversam com gente famosa, o resto, elas passam por cima com suas sandálias.

Essas "estagiárias", apesar de padecerem das mesmas misérias dos outros mortais (são inseguras, invejosas, solitárias), se julgam porta-vozes de um novo ser humano, com uma consciência social que recicla as paixões imundas dos velhos seres humanos, "que faz sexo com dignidade e respeito pelo outro".

A "esquerda festiva" que ele fala deu cria e hoje tenta inviabilizar qualquer tentativa de romper o ciclo do "silêncio na senzala". A causa dessa condenação ao silêncio, afora o puro autoritarismo de quem detém o comércio das idéias, é a simples vergonha do óbvio e ululante humano dentro da farsa.

As repetições maníacas de caricaturas invadem a leitura, nos transportando para um daqueles jantares de grã-finas, onde as amantes espirituais de Che Guevara suspiravam em um orgasmo libertário, misturando-se às freiras e padres de passeata, defensores da educação sexual para meninas de 4 anos de idade. "Sexo é como a vontade de beber um copo de água", dizia uma das freiras "pra frente".

Na escuridão da sua alma, nossa freirinha boba goza com a idéia de por o copo inteiro na boca e babar sobre ele. A normalização do sexo é a dissolução do sexo, sempre perigoso, delicioso, e muitas vezes banal. Lava-se o corpo, mas nunca o sexo.

Nelson percebe como é idiota a paixão pela saúde diante da vida. De lá pra cá, essas figuras se transformaram nos defensores do aborto legal sem culpa, do horror ao tabaco e ao álcool, e do sexo "político". A cultura se preparava então para se transformar no totalitarismo dos idiotas que recusam a dor que é ser um animal sem futuro. Ele se insere numa tradição de pensadores que recusa o humanismo barato. O "idiota" mente sobre os instintos que nos devoram para além da cartilha da saúde social. Sua crítica a "antimulher" revela seu olhar profético acerca da opressão exercida pelo feminismo exagerado que mata o amor.

Nelson era um "reacionário" em épocas de heróis. Heróis deviam sempre morrer jovens, como nos mitos, para evitar a vergonha. Não há dúvida que a ditadura matou e torturou. Isso não está em discussão. Ridículo é não enxergar que as ditaduras de esquerda também mataram, torturaram, humilharam, calaram milhares de seres humanos.

Tivéssemos nós caído em mãos de outras ditaduras, teríamos sangrado da mesma forma, com o risco de acordarmos numa grande Cuba.

A "vida como ela é" é triste na maior parte do tempo. Nelson Rodrigues é um clássico, narra o duro cotidiano da humanidade presa em uma natureza que une um espírito infinito a um animal abatido.

Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.

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