SEMANA PASSADA, comentando algumas crônicas do Nelson Rodrigues, descrevi alguns de seus personagens mais feios. Mas há nessas mesmas crônicas alguns exemplos de como pode existir um mundo para além da simples banalidade do mal.
Compartilho com muito da crítica do Nelson, e também com sua discreta visão da misericórdia. Sou acusado de ser um grande cético. Isso é verdade, em parte. Mas hoje conto algo em que acredito: milagres.
O leitor dirá: mas como um cético pode acreditar em milagres? Respondo: milagres nada têm a ver com "metafísica". Milagres têm a consistência de uma pedra que cai do céu sobre sua cabeça.
Explico-me: encanta-me a interrupção da ordem natural das coisas. Essa é quase sempre a banalidade encarnada. Em meados dos anos 80, já tendo desistido da medicina, sobrevivia de aulas particulares de inglês, enquanto voltava aos bancos da faculdade, agora de filosofia.
Certo dia estava eu sentado na sala de espera do consultório de um aluno. De repente entra, acompanhado de seu pai, um menino que tinha uma cabeça do tipo do "homem elefante" do filme. Imediatamente instala-se o espanto entre nós normais que ali estavam.
Nosso olhar estava indeciso, entre buscar mínimos detalhes daquela criança infeliz e um misto de vergonha e nojo. De repente, eis que ele se levanta, com a dificuldade que o tamanho da cabeça implicava, segue até a janela e olhando para fora diz com sua voz deformada: "Que dia mais lindo, olhe as pessoas na rua...".
Do monstro evidente, salta, de repente, uma alma. Ainda que muito mais esmagado pela vida do que qualquer um de nós ali assistindo sua agonia, o jovem monstro enxergava a beleza no óbvio. Nunca esqueci daquele olhar, preso no corpo de um monstro, a contemplar a beleza do mundo. E seu rosto deformado resplandecia essa beleza.
Qualquer explicação psicológica dessa sensação é mais do que desnecessária, é miserável como nosso nojo original.
No início dos anos 90 sofri um grave acidente de carro. Nenhuma experiência metafísica nasceu dessa violência a não ser a sensação bruta de que eu era uma simples massa em deslocamento no espaço sob a força das leis naturais. Nenhum controle sobre minha pequena vida. Saí andando dos restos do carro.
No dia seguinte, ao saber que eu tinha perdido o carro, dois alunos de inglês, sem que eu pedisse nada, obviamente, pagaram uns quatro ou cinco meses de aulas adiantados. Na mesma noite cheguei em casa com dois cheques robustos. Mais a ajuda do sogro, e no dia seguinte lá estava eu com um carro novo.
Toda vez que um homem ou uma mulher escapa da violenta máquina do mundo, sinto o odor de um milagre no ar. É claro que os "crentes na cientificidade do mundo e das pessoas" dirão que isso nada mais é do que "o humano". O incrível é como é raro esse "humano". Dirão os mesmos "sociólogos da alma": "A maldade humana é um problema político".
A política nunca nos fez menos óbvios do que somos. A máquina do mundo nos torna egoístas (precisamos pensar em nós mesmos), orgulhosos (mentimos porque precisamos de auto-estima), interesseiros (ser rápido na identificação do custo-benefício é essencial), invejosos (é um horror ver alguém melhor do que nós) e indiferentes (muito sentimento nos torna improdutivos). Todos esses comportamentos são absolutamente "racionais". Mente quem diz o contrário.
Todas as pedras são duras, mas algumas são mais duras do que outras. Por exemplo, a experiência da culpa. Na adolescência, no colégio jesuíta em Salvador, eu era um desses alunos "populares", muitos amigos, sucesso com as meninas, muita balada.
Tínhamos um desses colegas feios, chatos e bobos. Sempre sozinho. Um dia, a classe se pôs a tirar sarro dele. De repente, ele levanta para fugir da humilhação e cai em minha frente. Levanta a cabeça e olha pra mim como que a pedir socorro. É outro rosto de que não me esqueço.
Durante a noite, lembro-me da culpa inundando meu quarto. Coisa banal e silenciosa, pouco dramática, mas inesquecível. Dessas que formam um homem. Naquele dia, eu era o "idiota". Engana-se quem acha que faz mal sentir culpa.
Muitas outras vezes eu fui o "idiota" da cena. Mas nunca mais senti uma culpa como essa. Muitas oportunidades surgiram, mas não as aproveitei. Espero um dia conseguir. Não sou um homem de muitas esperanças, mas tenho algumas poucas.
Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.
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