O problema do mundo é não ser um pouco mais relativista. Eu sei, eu sei: o relativismo é mau, dizem, porque a idéia de que os valores dependem de meras escolhas individuais, sem nenhuma justificação externa ou racional, é uma fraqueza epistemológica e ética da maior gravidade. Fato. Mas eu falo de um relativismo ligeiro, um relativismo banal, o relativismo das coisas menores. Como um tempero que se coloca sobre o prato da vida, só para dar algum sabor mortal a tudo o que fazemos e sentimos. É o relativismo suave que ensina que nada tem uma imporância tão absolutamente esmagadora quando o fim é certo e o esquecimento também.
Lembro tudo isso com notícias que leio na imprensa portuguesa. Nos últimos dias, soube que 32 mulheres foram assassinadas em 2008 por seus namorados ou maridos. Existem cenários macabros de homens que apontam uma arma e disparam sem pestanejar em plena via pública. O resto é igualmente macabro: estrangulamentos, espancamentos, envenenamentos. O diabo a quatro. Motivos? Passionais, sempre passionais: o homem descobre, ou suspeita, que a mulher não é casta. E num gesto de loucura, comete a loucura.
E então recordo uma conversa que tive uns anos atrás com um amigo, em São Paulo, e o relato que ele me fazia de um conhecido jornalista que entrara em cenário idêntico: descobrira que a namorada, mais jovem, se afastara dele para procurar uma "nova vida", como se diz nas telenovelas; e ele, de cabeça perdida, incapaz de aceitar a rejeição, pegou na arma e fez o que fez. Arruinou a vida, a carreira, os amigos, a família, e etc. etc. etc.
Ouvi a história e perguntei aos meus pobres neurónios se eu seria capaz disso: amar uma mulher ao ponto de a matar por despeito. E a resposta, toc toc toc, é negativa. Tudo por causa de meu relativismo suave, que me acompanha dia após dia como um animal de estimação. Sim, tenho minhas fúrias, como qualquer pessoa racional. E existem momentos de um desespero tão profundo, e tão medonho, que chorar é um luxo. Mas mesmo quando o demónio se intromete na pacatez dos meus dias, existe um lado de mim que ri dele. Como se o espírito deixasse o corpo e, planando sobre a carcaça, contemplasse o absurdo da minha condição. O absurdo da condição humana. E uma voz invisível segreda-me ao ouvido: será que vale a pena, companheiro? Será que vale a pena tudo isso quando tu estarás morto no futuro médio? E, depois da voz, vem a imagem: como num filme de Bergman, eu, velho e morto, em caixão aberto.
O relativismo liberta-nos para fazer o mal, como acreditava Dostoiévski? Não creio. Em doses temperadas, o relativismo é um convite para não fazermos o mal. Ele esvazia o nosso patético ego como uma agulha que fura o balão de uma criança. E ele é sobretudo útil em matéria de amor: somos amados, magoados, atraiçoados. Acreditamos que, depois do abandono, teremos uma dor inultrapassável, que se vai prolongar pelos séculos seguintes.
Mas a verdade é bem mais triste e, paradoxalmente, bem mais feliz. Tudo passa. A dor vai diluindo-se em tristezas menores, que ficam como o pó esquecido nos cantos da casa. E certo dia descobrimos que o tempo cobriu tudo com invisíveis mortalhas; e o passado é o porto de onde a nossa embarcação já se afastou há muito. Vemo-lo ao longe, por entre a neblina. Mas não há regresso.
Desesperado leitor: se achas que a dor de hoje te autoriza a tudo, lembra-te que és nada e que a tua vida será nada. E festeja essa certeza com a alegria sincera dos náufragos resgatados.
João Pereira Coutinho, na Folha Online.
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