14.10.08

Conservar o quê?

O DEBATE entre conservadores e progressistas é mais complicado do que imagina nossa vã filosofia.

Quais são suas origens, para além de querermos ser simpáticos com feministas, minorias diversas, pobres, jovens, ateus ou religiosos? O termo "conservador" nasce francês, no início do século 19. Referia-se aos simpatizantes da "carta" que o britânico Edmund Burke escrevera a um intelectual francês logo após a revolução de 1789.

Burke não usa o termo na carta, mas critica duramente as ilusões de mudança social radical e a tendência dos jacobinos em reduzir a vida ao cálculo econômico e à retórica política. Ele detestava o desprezo pela experiência dos ancestrais e via esse desprezo como arrogância e estupidez. Num primeiro momento, "conservar" seria preservar as instituições políticas em funcionamento e as intuições morais e religiosas que sustentariam uma condição civilizada sempre em risco. Não se mexe com seres humanos sem temor. De onde viria esse temor? Sua carta ficou conhecida como "Reflexões sobre a Revolução na França". Lê-la nos tira da banalidade nesse debate.

Outros dois nomes marcam as raízes deste ceticismo para com as utopias políticas, racionalistas e "científicas" que nascem com Francis Bacon (séculos 16-17), Jean-Jacques Rousseau (século 18) e ganham força com o pensador utópico Karl Marx (século 19): o escocês David Hume (século 18) e o francês Aléxis de Tocqueville (século 19).

A complexidade já se revela nessa variedade. Infelizmente reduzimos rudemente esta herança a dois dos sentidos que ela adquiriu ao longo dos séculos 19 e 20. Os únicos conhecidos pelo senso comum.

O primeiro é o "amor ao mercado" (e atualmente, com a crise americana, o ruído volta na esteira da batalha entre democratas e republicanos). O segundo é o "amor à religião". Fora do seu contexto filosófico, esses traços viram caricaturas ridículas. Hume, Burke e Tocqueville não são sinônimos de "Bush pai, Bush filho e cristãos americanos fanáticos". Não é "coisa" de gente careta com medo de sexo, ciência e insensíveis à pobreza.fundamento racional da moral. Para ele, nossa ação é movida por hábitos ancestrais e pelo afeto (senso moral) e não porque "conhecemos" racionalmente o Bem e o Mal. A razão é escrava das paixões. Hume considerava "fanáticos" tanto os racionalistas (crentes na razão) quanto os religiosos radicais.

Burke afirmava que as crenças e os hábitos são formas testadas no confronto com nossa perigosa e frágil humanidade. As relações humanas se constroem em ambientes concretos (família, bairro, trabalho, igreja, cemitérios) e não através de abstrações políticas ou morais como "liberdade, fraternidade e igualdade". O resumo disso é sua frase: "A sociedade é uma comunidade de almas que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram".

Os revolucionários eram afoitos que negavam os mortos (a sabedoria do passado) e punham em risco os que ainda não tinham nascido, querendo programar politicamente como deveria ser o humano perfeito do futuro. Eles só enxergavam a si mesmos (o presente sem passado).Os jacobinos eram péssimos psicólogos, historiadores e cientistas sociais.

Tocqueville visitou os EUA em 1831 e analisou o impacto da democracia nos hábitos e costumes (entre outras coisas). Era um filósofo social e político sutil.

Ele percebeu alguns riscos da democracia: a tirania invisível da maioria, a inteligência medíocre e excessivamente prática, a vitória da opinião pública sobre o pensamento, o utilitarismo mesquinho, a tensão sem solução entre os dois dogmas da democracia, a liberdade e a igualdade. A primeira radicaliza as diferenças entre as pessoas, a segunda esmaga essas diferenças em nome da miserável média humana.

Antes da política estão os dramas morais e eles transcendem as formas políticas. Daí a idéia de que a "redenção política" seja ridícula. A religião tem valor porque acolhe a dor e o mistério sem resposta da vida humana.Conservar o quê? A dúvida para com as soluções racionais e "científicas" apressadas, e as fórmulas políticas de "gabinete". Conservar a consciência da longa experiência humana com sua própria loucura.

Isso não implica em recusar mudanças, implica sim em prudência com as ilusões de que os humanos sejam facilmente racionais, belos e bons.

Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.

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