Em tempos de anorexia e bulimia, ser gorda é crime, é falta de respeito, um tipo especial de perversão, motivo de espanto e reprovação. Mesmo assim, confesso: sou gorda. Ou melhor: sou obesa, de uma obesidade mórbida.
Quem me conhece deve achar que estou brincando ou que perdi o senso. Mas é sério, sou gorda. Não de corpo, mas obesa de alma, uma verdadeira orca de espírito. E pior, não sei ao certo a quê ou a quem atribuir minha gordura. Dizem os entendidos nos astros que tem alguma coisa a ver com o Saturno no ascendente, ocasionando uma dieta existencial especialmente pesada e de difícil digestão. Mas não sei. Quem sabe?
O fato é que a obesidade espiritual pode ser tão escandalosa quanto a obesidade física, causando verdadeira aversão a muitos dos demais. E isso porque o gordo de alma, por sua própria constituição, não é, não sabe e não faz as coisas ficarem mais leves. O gordo de alma é pesado, lento e desajeitado. As coisas são mais difíceis e, em alguns casos, até mais dolorosas para ele. O gordo de alma não consegue rir do que não é risível, não consegue esquecer o que não é esquecível, não consegue entender o que não é inteligível. Ele simplesmente não “processa” a coisa, não “queima” essa banha toda. O gordo de alma não cabe em qualquer lugar.
Enfim, o gordo de alma é um peso, um fardo. Ele absorve mais e retém mais de tudo aquilo que poderia ser encarado mais “levemente”, com mais “equilíbrio”, ou que poderia ser perdido com uma boa “malhação” existencial. O gordo de alma chama atenção por si só, está sempre como que debaixo dos holofotes, pronto para ser vaiado como uma piada não entendida. Ele é um incômodo e, ao mesmo tempo, uma denúncia ambulante, chacoalhando os pneus e gritando, por meio de suas adiposidades, sobre os bacons e feijoadas da vida, sobre os Mc’traumas tamanho grande disponíveis a cada esquina, sobre os mocotós do caminho. Sobretudo, porém, o gordo de alma é um dedo apontado contra a versão slim da vida, contra a falsa magreza amplamente apregoada, aquela magreza que não é sinal de saúde e moderação, mas apenas aparência de leveza e espirituosidade, tornando tudo leviano, barato e superficial, como um Midas às avessas. É magreza do riso fácil, do sono fácil, do sexo fácil. A magreza do “deixa pra lá”, do “tanto faz”, do “quem se importa”.
Talvez você me pergunte que orgulho eu possa ter com essa minha condição, ou qual o mérito de confessá-la. E então eu te respondo que os motivos do meu orgulho são o aconchego que o colo de um gordo de alma proporciona, invariavelmente muito maior do que o do colo de um magrelo, pois sempre há mais espaço e suporte para um outro alguém além de si mesmo. Respondo-te também que mesmo debaixo do mais rigoroso inverno da vida, daqueles em que a neve tranca a porta pelo lado de fora, o gordo é capaz de aquecer não apenas a si, mas também aos que estão próximos. Quanto aos meus méritos são eles mesmos os meus fardos, afinal, ser uma alma gorda entre tantos espíritos magros não deixa de ser um estranho privilégio. Sou gorda e sou feliz.
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