1.11.08

Reflexões sobre um fio de cabelo

Eu estava na frente do espelho, escovando os dentes. Gostava do que via. Embora meu cabelo estivesse totalmente branco, eu não tinha o menor sinal de calvície. Os fios imaculados, contra a pele queimada do sol, me davam um ar de armador grego. Sem tirar os olhos do reflexo, abaixei-me para cuspir a pasta. E então percebi que havia um fio preto na minha cabeça.

Não é possível, sussurrei. Não tenho idade para isso. Fiquei ali parado, só meus olhos se mexiam, incrédulos com a presença do intruso. Erguia-se grosso e retinto, bem no meio da franja, sem deixar dúvidas sobre si mesmo. Tranquei a porta do banheiro. Não queria que minha mulher me visse com aquele fio preto na cabeça. Era só arrancá-lo e pronto, ninguém ficaria sabendo. Mas e se esse for apenas o primeiro de muitos? Então estou ficando jovem, pensei.

Logo estarei grisalho, e não demora para que eu esteja andando por aí com uma cabeleira negra ao vento; um rapazinho, livre e ávido por novas experiências. Vou chegar ao escritório, às oito horas da manhã, e perguntar para mim mesmo: o que estou fazendo nesta baia, com um crachá pendurado no peito, quando o meu sonho é ser músico? Nada, nem o salário, nem o plano de previdência, nem o bônus de final de ano, vai conseguir me prender àquela cadeira ergonômica e giratória. Sem pensar duas vezes, entrarei na sala do meu chefe e lhe direi que estou largando tudo em nome da minha realização pessoal. Ele dirá que eu estou louco. Eu tomarei o insulto como elogio, e sairei da sala assobiando, com a confiança dos que ainda têm tudo pela frente.

Passarei a viver com pouco dinheiro, mas não vou me incomodar com isso, já que não verei mais diferença entre um guardanapo de pano ou de papel, um ingresso para a numerada ou para a geral. Ficarei horas de pé na calçada em frente ao boteco, tomando cerveja morna no copo de plástico e ouvindo o papo de meia dúzia de maconheiros, e acharei que tive uma noite incrível. Minha alma irá encher-se como uma esponja. Não terei mais medo de candidatos de esquerda, radicais livres e frituras. Me sentirei imortal, indestrutível e, de repente, vou achar que posso mudar o mundo. Já me vejo com a veia do pescoço saltada, tentando convencer os meus colegas de golfe a entrarem numa ONG pela libertação do Tibet. Serei ignorado e, a partir desse dia, só irei andar com a minha própria tribo.

Vou chegar em casa com o cabelo espetado e bastõezinhos de metal enfiados na língua e na orelha, e dizer para minha mulher que pô cara, o casamento miou, já era, não rola mais. A comodidade de estar com alguém que conhece todos os meus defeitos, e não se importa mais com eles, vai me parecer totalmente irrelevante. Que se foda a estabilidade emocional. Que se foda o gosto em comum pela tranca e pela pizza de massa fina. Eu vou querer é paixão, o peito arfante e a garganta seca, o pau arrebentando o zíper, madrugadas em claro trepando e rindo de bobagens e desenhando sombras na parede.

Vou perder tudo que eu tenho no divórcio, serei chamado de imbecil pelos meus próprios filhos, e nem isso será capaz de arrancar o sorriso que estampará o meu rosto de têmpora a têmpora. E quando essa paixão acabar – hoje em dia nada dura mais que uma série de TV –, irei atrás de outras. Chegarei em dez, vinte mulheres na seqüência, e não me importarei de começar tudo de novo, de responder qual meu signo e meu ascendente, de pagar a conta e de levar para casa, desde que eu tenha a chance de pegar em uns peitinhos no final da noite.

Serei um ser incansável. Cruzarei o país na poltrona de um ônibus convencional só para correr atrás de um trio elétrico. Subirei montanhas com uma barraca nas costas só para ver paisagens diferentes. E então voltarei cheio de histórias para o conforto do meu lar. Um apê que dividirei com três marmanjos que nunca ouviram falar de uma vassoura. Mas quem se importa com a falta de conforto quando se tem o espírito leve e o coração pulsante?, eu perguntei para mim mesmo. Então tirei os olhos do espelho, fitei o imenso banheiro ao meu redor, pensei nos meus chinelos ao pé da cama, e arranquei, de um só golpe, o fio preto da minha cabeça.

Giovana Madalosso, no Blônicas.

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