Natal, misto de ansiedade e frustração. Em algum recanto de nossas nostalgias inconscientes, emerge um gosto de sol. Os símbolos da árvore, o presépio com o Menino Jesus, a Virgem e os pastores, tudo ressoa na criança que já não somos e, no entanto, nos habita. À semelhança de Proust, tateamos em busca de alegrias desvanecidas, sabores atávicos, rostos queridos e perdidos.
Há também um gosto de sal. A reificação das relações humanas, o consumismo compulsivo, o medo ao dom de si, fazem-nos gravitar em torno do espectro de Papai Noel. Dar algo para não se dar, reter o afeto hermeticamente embrulhado, mil cordas a amarrar-nos ao próprio inferno que, como definiu Dostoiévski, é o sofrimento de não poder mais amar. Muitos presentes atestam o quanto temos sido ausentes na vida de quem nos é próximo.
A festa de Natal originou-se no século II, quando teólogos pretenderam determinar a data do nascimento de Jesus, não indicada nos Evangelhos. João Batista teria sido concebido no equinócio de outono e nascido no solstício de verão. De acordo com Lucas 1, 26, Jesus teria sido concebido seis meses antes de João, ou seja, no equinócio da primavera do hemisfério Norte (25 de março). Teria, pois, nascido a 25 de dezembro, quando no Oriente o Sol retoma seu movimento de ascensão.
A segunda hipótese, mais provável, faz do Natal a versão cristã da festa pagã do "deus sol invencível" (= natale solis invictus), introduzida no ano 274 pelo imperador Aureliano e fixada no solstício do inverno europeu a 25 de dezembro. Para o prólogo do evangelho de São João, Cristo é "a luz do mundo". Assim, a fé cristã resgata a comemoração pagã ao reforçar, nas primeiras comunidades da Igreja, a convicção de que celebravam a festa do verdadeiro Sol.
De fato, ignora-se o dia e a hora do nascimento de Jesus. No século II, celebrava-se a 6 de janeiro a festa do batismo de Cristo e a manifestação de sua divindade (epifania). A partir do século IV, a Igreja do Oriente passou a celebrar a festa do nascimento também naquela data.
No Ocidente, a partir do ano 353 o Vaticano oficializou celebrar na noite do dia 25 de dezembro. Provavelmente uma forma de cristianizar as festas pagãs conhecidas como "Saturnais", que aconteciam entre 17 e 24 de dezembro, antecipando a festa de Janus, o deus de duas faces.
Desde o século IV, um hino latino cantado na cerimônia de Natal dizia que Cristo nasce no meio da noite. Daí o costume de assumir a meia-noite como hora do nascimento de Jesus.
Hoje, novo resgate do Natal é operado pela figura pagã e mercantilista de Papai Noel, que sacramenta a desigualdade social ao ofertar presentes às crianças bem nascidas e deixar as pobres de mãos vazias (exatamente o inverso do canto de Maria no Magnificat, onde o Senhor "despede os ricos de mãos vazias e sacia de bens os famintos").
O Natal cristão herda o espírito de justiça e de reconciliação do sistema sabático e do ano jubilar judaicos, nos quais as dívidas eram perdoadas, os escravos libertados, as terras eqüitativamente redistribuídas. Herança hoje deturpada pela troca de presentes a camuflar a resistência ao encontro de pessoas. Deixa-nos essa amarga nostalgia que perdura Natais afora, sequiosa de alegria sincera e de efusão do espírito. Vinhos, nozes e perus não aplacam essa fome de beleza que abre um oco no centro do coração.
Natal é renascer a partir do núcleo do plexo solar onde a intuição captar a nossa verdade mais íntima. Nada mais desafiador do que a fidelidade a si próprio. No entanto, tememos a solidão porque ela nos traz o silêncio e, de dentro dela, ressoa a voz que repete o verso de José Régio: "Não sei para onde vou, sei que não vou por aí". E é "por aí" que temos ido, sem forças para mudar de rumo.
O Natal apresenta-se também como momento coletivo de começar de novo. Somos hoje uma nação grávida de si mesma. No entanto, o Brasil não renasce, como Jesus, na manjedoura dos pobres, lá onde se situam 50 milhões de brasileiros excluídos de benefícios e direitos econômicos e sociais elementares, como trabalho bem remunerado, educação, saúde, cultura e lazer.
Agora, a crise do capitalismo, que o desnuda e nos ameaça, assegura a continuidade dos propósitos herodianos sob o ingênuo otimismo de quem acredita que em balcão de lojas se compra qualidade de vida.
A vida é dom, e sua qualidade, amor.
Feliz Natal, leitores e leitoras.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff, de “Mística e Espiritualidade” (Garamond), entre outros livros.
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25.12.08
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Um comentário:
Compare o texto do Frei Betto com o do Macedo. Não faça uma análise crítica, literária, entre as duas escritas. Veja apenas a humanidade, a beleza interior, a integridade. E veja as razões do descrédito, da miséria do mundo neopentecostal.
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