6.12.08

A síndrome de Truman

A epidemia do século 21 já tem nome: "Síndrome de Truman". O nome pertence a filme de 1998, "The Truman Show/ O Show de Truman", com Jim Carrey no papel principal. Não lembram? Eu lembro: o personagem de Carrey era um simpático vendedor de seguros que, gradualmente, descobre a fraude existencial que o envolve. A sua vida, desde o berço, é apenas um gigantesco "reality show", filmado por câmeras ocultas 24 horas por dia. E todas as pessoas que o rodeiam --mulher, família, vizinhos, amigos e inimigos-- são meros actores contratados para representarem seus papéis.

O filme termina em registro heróico, com Carrey a libertar-se do pesadelo, ou seja, abandonando o estúdio onde viveu encerrado (e filmado) durante décadas.

Acontece que o pesadelo já emigrou para a realidade. Leio agora na imprensa do dia que cresce assustadoramente o número de pessoas que acredita genuinamente que a vida não lhes pertence. Pertence a um produtor televisivo que montou uma gigantesca ilusão em volta. Como no filme de Jim Carrey, esta gente-se sente-se vigiada por câmeras imaginárias e olha para as respectivas vidas como se apenas estivessem a cumprir um roteiro pré-escrito.

Não confiam na família. Não confiam nos amigos. Não confiam em ninguém. E há mesmo casos de tentativas de suicídio por criaturas transtornadas que não aguentam "continuar" no "show". Uma das histórias mais pungentes pertence a um anónimo norte-americano que, cansado de "representar", entrou num edifício do governo federal e implorou, de joelhos, para que desligassem as câmeras e terminassem com o programa. Ele queria, simplesmente, sair.

E os médicos? Os médicos têm uma palavra importante, a começar pelos psiquiatras. Mas, como os próprios admitem, o caso não é simples de resolver. Desde logo porque eles próprios são vistos pelos pacientes como parte do engodo. Os médicos não são médicos. São atores, vestidos de bata branca, que tentam convencer o doente de que ele está doente.

Não pretendo levantar polémicas inúteis. Mas, confrontado com a epidemia, eu próprio duvido da doença dos doentes. E pergunto, inteiramente a sério, se eles não serão as únicas pessoas lúcidas no meio da loucura reinante.

Um pouco de história talvez ajude: durante séculos, a posição que ocupávamos em sociedade era determinada pelo berço em que nascíamos. Nascer no berço errado, em circunstâncias de pobreza material e cultural, era meio caminho andado para uma vida igualmente pobre e lúgubre. Existem todas as exceções do mundo, claro. Mas as exceções apenas servem para comprovar a tese: a nossa posição em sociedade era uma questão de sorte, não de mérito.

Com o fim da Primeira Guerra Mundial, e o enterro do Velho Mundo que o conflito arrastou consigo, tudo mudou. O berço continuou a ter palavra importante. Mas não mais decisiva. O mérito passou a determinar o nosso lugar em sociedade. Em teoria, e sobretudo na prática, seria possível, ao filho de um pobre, entrar nos salões de um rico. Bastava, para isso, que o pobre ganhasse o dinheiro necessário para os comprar. As nossas sociedades são a prova provada de que a meritocracia vingou e que o "self-made men" derrotou grande parte dos preconceitos de classe.

E hoje? Hoje, como escreve Toby Young em recente ensaio para a revista "Prospect", a era meritocrática foi enterrada. Depois do berço e do mérito, chegámos à era da celebridade. Podemos nascer no berço certo; podemos até subir a corda social com os nossos próprios pulsos, provando o nosso valor intrínseco; mas se não somos "famosos", ou seja, se não alimentamos o voyeurismo coletivo em que vivemos, não somos rigorosamente nada. Vivemos em sociedades mediatizadas e massificadas. E numa sociedade mediatizada e massificada, é o anonimato, e não a pobreza ou a incompetência, que pesa profundamente sobre a espécie.

Não é de admirar, por isso, que uma parte crescente de seres humanos se sinta cansada do circo instalado; se sinta cansada, enfim, de um mundo de celebridades ocas que, na verdade, parece um "reality show" permanente. Eles imploram para sair do espetáculo na impossibilidade de o derrotarem.

Loucos? Não sou médico. Sou apenas um colunista disfarçado de médico. Mas desconfio que existe mais sanidade na loucura dessa gente do que em todos os "reality shows" que rodeiam as nossas vidas.

João Pereira Coutinho, na Folha Online.

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3 comentários:

Anônimo disse...

actores, tá em Portugal, querido...

berna disse...

Depois dessa vou escrever Ensaio sobre a Loucura.Subo neste palco minha alma cheira a talco, como bumbum de bêbê. fui.....rsrs

Timilique! disse...

J.R. Guzzo escreveu, em recente editorial brasileiro,que "o sujeito oculto de toda essa questão, no fundo, é a hostilidade ao mérito.Ter mérito, para os agentes do Pró-Culpa, é prejudicar alguém.Não é um ativo.É um débito.Em vez de ser a razão para incentivo,é algo a ser "compensado"- uma maneira disfarçada de dizer desencorajado,limitado ou punido."
Já é voz comum, mas não custa repetir, que "Ser" deveria valer mais do que "ter" ou "aparentar ter".
Uma boa consciência e auto-estima saudáveis deveriam valer muito mais do que o (frágil) reconhecimento público.Como diria meu velho avô, Antonio Pacitti,"tem muita gente frívola por aí com moral "marca-barbante", mas esforço,coragem, perseverança e dedicação de uma vida inteira valem mais do que 5 minutos de fama propalada por qualquer midia."

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