21.3.09

Meu amor por Mia Couto

Mia Couto, apesar do nome, é homem. O apelido vem da infância e tem alguma coisa a ver com o miado de gato; não me lembro dos detalhes. Moçambicano e um ás da palavra, ele vai despontar como um dos gênios da literatura de nossa época. Mia Couto brinca com os neologismos, cria metáforas fantásticas e comunica sentimentos profundos. Deparei com seus textos em uma viagem a Portugal e me apaixonei à primeira vista. De lá para cá leio tudo.

Acabo de comprar O Fio das Missangas (Companhia das Letras); um livro de contos. Embora ainda esteja na metade, já estou seduzido de novo. Em tempos de carnaval, vale perceber como Mia Couto fantasia as palavras com lantejoulas e fios de ouro. Ele transmite a beleza e a angústia da vida. Como um trailler de cinema, copio alguns pedacinhos do livro para deixar os que gostam de literatura com água na boca.

... quem assim sabe rimar, ordena o mundo como um jardineiro. E os jardineiros impedem a brava natureza de ser brava, nos protegem dos impuros matos.

Os fumos da cozinha já se tinham pegado aos olhos, brumecido seu coração de moça. Se um dia ela dedicasse seu peito seria a um cheiro, cumprindo uma engordurada receita.Às vezes, de intenção, ela se picava. Ficava a ver a gota engravidar o dedo. Depois, quando o vermelho se excedia, escorrediço, ela nem injuriava. Aquele sangue, fora do corpo, era o seu desvairo, o convocar da amorosa mácula.

A meu homem deram transfusão de sangue. Para mim, o que eu queria era transfusão de vida, o riso entrando na veia até me engolir, cobra de sangue me conduzindo à loucura.

Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito, sim, por educação. Mas não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.

Na minha vila, a única vila do mundo, as mulheres sonhavam com vestidos novos para saírem. Para serem abraçadas pela felicidade. A mim, quando me deram a saia de rodar, eu me tranquei em casa. Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente nocturna. Nasci para a cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentido prazer na vergonha.

Quem ainda não leu Mia Couto, comece. Os iniciados em sua literatura concordam que ele representa o vestígio genial de Guimarães Rosa, misturado ao agudo existencialismo de Fernando Pessoa (O Livro do Desassossego é seu predileto).

Soli Deo Gloria.

Ricardo Gondim

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