Faz muito tempo que me pergunto por que o Brasil não faz sitcoms. Nunca nos faltaram bons humoristas na televisão: de Ronald Golias a Hermes e Renato, passando por Regina Cazé, Bussunda, Andréa Beltrão, Jô Soares, Pedro Cardoso, Chico Anísio; dava pra fazer dois times de futebol com nossos comediantes e ainda sobrava uma meia dúzia do lado de fora, comendo churrasco e fazendo embaixadinhas. Por que será então que, nos últimos quarenta anos, esse pessoal fez filmes e sketchs, novelas e paródias, fez humor político e palhaçada, foi da macaquice mais tosca à metafísica, mas nunca, ou quase nunca, aventurou-se pelo formato que, nas últimas duas décadas, representou o que de melhor se produziu em humor, no áudio-visual?
Anteontem, ao acordar e ver um post it colado no espelho do banheiro da minha irmã, entendi finalmente a razão. “Lembrar de levar o bolo!!!”, dizia o post it, com a letra do Corey, meu cunhado. Fazia uns três dias que Corey vinha falando do bolo. Era para Mrs. McCoy, professora de biologia na escola em que ele trabalha. Todo começo de ano, a escola faz um sorteio e cada funcionário fica encarregado de organizar uma “festinha” para outro, na sala dos professores. Levar o bolo era uma coisa séria. Se ele se esquecesse, seria uma grande mancada com a Senhora McCoy. Ia pegar mal lá no trabalho. Além de tudo, a senhora McCoy já tinha sido dona de uma empresa de catering, não era qualquer bolo que resolveria o problema. E nos dias em que passei em Poughkeepsie (estou agora num banco da ferroviária, esperando o trem para Manhattan), enquanto não estava dando aula ou explicando alguma coisa para seu cunhado brasileiro, Corey Gorey, professor de inglês e roqueiro, estava pensando no tal bolo.
Eis o paradoxo que os americanos vivem: para que a máquina funcione azeitadinha e ninguém atrapalhe a vida do outro, para que o republicano do Texas possa caçar e a Dominatrix de Nova York possa vestir-se de látex e o barrigudo do Iowa possa participar da corrida americana de salsichas sobre uma pista de ketchupe, sem que um atrapalhe o outro, todas as esferas da vida foram normatizadas. Não há degrau do comportamento humano ou possível situação do cotidiano para a qual eles não tenham desenvolvido um método de ação, um protocolo destinado a economizar tempo, dinheiro, neurônios e conflitos. E é do atrito entre as pulsões individuais e a opressão dessa microfísica do proceder que surge o sitcom. Ele é o happy hour, a válvula de escape que torna possível acordar no dia seguinte, estampar o sorriso na cara e levar o bolo da senhora McCoy.
Como eles fazem isso? Ironizando, subvertendo, escrutinando as mini-regras do cotidiano com as lentes do humor. No primeiro episódio de Seinfield, uma conhecida pede para hospedar-se na casa de Jerry. Ela quer fazer sexo? Ele deve colocar um colchão para ela na sala ou esperar que durmam juntos, na cama dele? Qual o procedimento padrão quando uma conhecida pede para hospedar-se na sua casa? Que sinais ela emitiu? Como analisá-los? Jerry e George passam todo o episódio discutindo o assunto.
Nós, no Brasil, não fazemos sitcom pois não existem as regras cotidianas a serem subvertidas, discutidas, ridicularizadas. Afinal, se ninguém sabe ao certo o que se deve e o que não se deve fazer nem nas maiores instituições, imagina nas festas de aniversário da firma! Ainda estamos tentando passar a reforma política e discutindo se um deputado pode ou não pode dar passagens pagas com dinheiro público para seus familiares, que pressão pode haver em torno da obrigação de se levar ou não um bolo de aniversário?
Se a espontaneidade nas relações é melhor ou pior do que o bolo pré-agendado da Mrs. McCoy para o futuro da nação é uma discussão cabeluda na qual não me atrevo a entrar. Mas, para o humor televisivo, não há dúvida de que a segunda opção foi muito mais frutífera.
* * *No dia 19 estréia aqui Whatever works, o filme novo do Woody Allen. No papel principal (aquele que chamamos de “papel de Woody Allen”) está Larry David, o cara que, ao lado de Jerry Seinfield, criou o melhor sitcom de todos os tempos. Há uma matéria interessante sobre os dois e o humor judaico nos EUA na revista New York dessa semana.
* * *Alguém pode argumentar que Os Normais era um bom Sitcom. É verdade. E talvez a chave para ter funcionado tenha sido focar os conflitos em torno de um casal, não de amigos ou colegas de trabalho. Afinal, entre um homem e uma mulher, mesmo na mais esculhambada das sociedades, sempre existem regras - e onde há regra, há humor.
Antonio Prata
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6.6.09
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