Ainda não me acostumei com as perdas. Já perdi meu pai, meu avô, professores, mestres. Agora estou perdendo amigos. Mas não me acostumo. É verdade que a dor se atenua com o tempo, mas minha alma agora tem ficado indelevelmente esburacada pela ausência permanente deles, e sinto que, aos poucos, estou ficando sem pedaços da minha própria memória, sem aquela possibilidade maravilhosa de pedir que relembrem algum fato pontual de nossas vidas. “Vô, lembra-se daquela vez em que desenhei com giz de cera na parede da sua casa?” Então o “Vô” começava a detalhar, sem rabujice, alguns dos cabelos brancos que lhe proporcionei. “Pai, lembra-se de quando soltamos alguns balões de gás hélio com bilhetes atados nas pontas, caso alguém os encontrasse?”
Hoje perdi uma amiga querida, Inge Schreen. Mais que querida. Ela e o marido participaram da minha adolescência, dos conflitos na faculdade de Medicina, dos meus pequenos dramas existenciais, de decisões importantes como morar fora do país e trancar a faculdade, voltar, casar, mudar de cidade, mudar de Estado, mudar de sotaque.Com ela partilhei por vezes certos medos e inabilidades, receios e dúvidas. Era uma mulher inteligentíssima, hábil com palavras e gestos, bem humorada. Quem teria disposição de gastar as férias inteiras viajando pelo Brasil dentro de um trailler com o marido e 3 filhos adolescentes? Quem seria capaz de deixar riscado a lápis o batente da porta da sala com a altura progressiva de todos os filhos e netos durante anos, sem passar uma tinta por cima? Ter viajado o mundo inteiro e mesmo assim exclamar alegremente quando presenteada com coisas simples como uns docinhos de padaria? Quem seria capaz de, quando já na doença avançada, discutir detalhadamente sobre o sucesso e insucesso da quimioterapia, ler livros sobre obituários e “adiantar” o aniversário da neta mais velha, com receio de não poder estar presente quando ela completasse seus 15 anos?
Seu sorriso caloroso, vestido florido, óculos de aros dourados, é assim que a vejo na fotografia da minha memória. Em minha última visita, há pouco mais de um ano, não evitamos conversar sobre o câncer, mas preferimos gastar a noite falando mais dos nossos filhos, dos seus netos, das travessuras do cachorro da casa, das fotos na parede do corredor, das alegrias cotidianas, dos relacionamentos.
Hoje perdi uma amiga querida, Inge Schreen. Mais que querida. Ela e o marido participaram da minha adolescência, dos conflitos na faculdade de Medicina, dos meus pequenos dramas existenciais, de decisões importantes como morar fora do país e trancar a faculdade, voltar, casar, mudar de cidade, mudar de Estado, mudar de sotaque.Com ela partilhei por vezes certos medos e inabilidades, receios e dúvidas. Era uma mulher inteligentíssima, hábil com palavras e gestos, bem humorada. Quem teria disposição de gastar as férias inteiras viajando pelo Brasil dentro de um trailler com o marido e 3 filhos adolescentes? Quem seria capaz de deixar riscado a lápis o batente da porta da sala com a altura progressiva de todos os filhos e netos durante anos, sem passar uma tinta por cima? Ter viajado o mundo inteiro e mesmo assim exclamar alegremente quando presenteada com coisas simples como uns docinhos de padaria? Quem seria capaz de, quando já na doença avançada, discutir detalhadamente sobre o sucesso e insucesso da quimioterapia, ler livros sobre obituários e “adiantar” o aniversário da neta mais velha, com receio de não poder estar presente quando ela completasse seus 15 anos?
Seu sorriso caloroso, vestido florido, óculos de aros dourados, é assim que a vejo na fotografia da minha memória. Em minha última visita, há pouco mais de um ano, não evitamos conversar sobre o câncer, mas preferimos gastar a noite falando mais dos nossos filhos, dos seus netos, das travessuras do cachorro da casa, das fotos na parede do corredor, das alegrias cotidianas, dos relacionamentos.
“ - No fim, o que vale, o que fica, são os relacionamentos, as pessoas...”, ela e o marido disseram ao final da noite, mãos dadas. E ficamos todos gratos a Deus, embevecidos por alguns minutos em uma espécie de oração silenciosa por estarmos partilhando a mesa e renovando os laços de amizade e amor.
Eu gostaria agora de ir lá e ainda levar docinhos, e rirmos um pouco ao redor da mesa, e abraçá-los ao final, e nos despedirmos no portão de madeira. Não posso mais, e por isso não me acostumo com as perdas. Hoje chorei muito a sua ausência, somada às dos que já se foram.
Um dia a dor será mais suave e a lembrança suportável. Isso já aprendi. Mas o que não me acostumo é ter a alma cada vez mais esburacada, e minha memória com dificuldades em se renovar, meio que aos pedaços.
O que suaviza é ter tido a chance de conhecê-la.
..
Helena Beatriz Pacitti, 02/9/2009
2 comentários:
Quem essa pessoa? Escreve "profissionalmente"? Esse texto não só é muito bom literariamente, senão que consegue expressar o sentimento ante a morte de parentes e amigos sem ser meiga, nem cursi, nem nada a mais que humana, sensível, parte da raça humana que merece esse nome. Muito bom!!!
Oi,Carlota. Que bom que gostou. Na etimologia, "amador" é o que faz as coisas por amor.
É isso. Sou amadora.
Grande abraço.
Helena
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