5.7.09

Uma vida extraordinária – e quase desconhecida


Ainda não me acostumei com as perdas. Já perdi meu pai, meu avô, professores, mestres. Agora estou perdendo amigos. Mas não me acostumo. É verdade que a dor se atenua com o tempo, mas minha alma agora tem ficado indelevelmente esburacada pela ausência permanente deles, e sinto que, aos poucos, estou ficando sem pedaços da minha própria memória, sem aquela possibilidade maravilhosa de pedir que relembrem algum fato pontual de nossas vidas. “Vô, lembra-se daquela vez em que desenhei com giz de cera na parede da sua casa?” Então o “Vô” começava a detalhar, sem rabujice, alguns dos cabelos brancos que lhe proporcionei. “Pai, lembra-se de quando soltamos alguns balões de gás hélio com bilhetes atados nas pontas, caso alguém os encontrasse?”

Hoje perdi uma amiga querida, Inge Schreen. Mais que querida. Ela e o marido participaram da minha adolescência, dos conflitos na faculdade de Medicina, dos meus pequenos dramas existenciais, de decisões importantes como morar fora do país e trancar a faculdade, voltar, casar, mudar de cidade, mudar de Estado, mudar de sotaque.Com ela partilhei por vezes certos medos e inabilidades, receios e dúvidas. Era uma mulher inteligentíssima, hábil com palavras e gestos, bem humorada. Quem teria disposição de gastar as férias inteiras viajando pelo Brasil dentro de um trailler com o marido e 3 filhos adolescentes? Quem seria capaz de deixar riscado a lápis o batente da porta da sala com a altura progressiva de todos os filhos e netos durante anos, sem passar uma tinta por cima? Ter viajado o mundo inteiro e mesmo assim exclamar alegremente quando presenteada com coisas simples como uns docinhos de padaria? Quem seria capaz de, quando já na doença avançada, discutir detalhadamente sobre o sucesso e insucesso da quimioterapia, ler livros sobre obituários e “adiantar” o aniversário da neta mais velha, com receio de não poder estar presente quando ela completasse seus 15 anos?

Seu sorriso caloroso, vestido florido, óculos de aros dourados, é assim que a vejo na fotografia da minha memória. Em minha última visita, há pouco mais de um ano, não evitamos conversar sobre o câncer, mas preferimos gastar a noite falando mais dos nossos filhos, dos seus netos, das travessuras do cachorro da casa, das fotos na parede do corredor, das alegrias cotidianas, dos relacionamentos.

“ - No fim, o que vale, o que fica, são os relacionamentos, as pessoas...”, ela e o marido disseram ao final da noite, mãos dadas. E ficamos todos gratos a Deus, embevecidos por alguns minutos em uma espécie de oração silenciosa por estarmos partilhando a mesa e renovando os laços de amizade e amor.

Eu gostaria agora de ir lá e ainda levar docinhos, e rirmos um pouco ao redor da mesa, e abraçá-los ao final, e nos despedirmos no portão de madeira. Não posso mais, e por isso não me acostumo com as perdas. Hoje chorei muito a sua ausência, somada às dos que já se foram.
Um dia a dor será mais suave e a lembrança suportável. Isso já aprendi. Mas o que não me acostumo é ter a alma cada vez mais esburacada, e minha memória com dificuldades em se renovar, meio que aos pedaços.
O que suaviza é ter tido a chance de conhecê-la.
..
Helena Beatriz Pacitti, 02/9/2009

2 comentários:

carlota disse...

Quem essa pessoa? Escreve "profissionalmente"? Esse texto não só é muito bom literariamente, senão que consegue expressar o sentimento ante a morte de parentes e amigos sem ser meiga, nem cursi, nem nada a mais que humana, sensível, parte da raça humana que merece esse nome. Muito bom!!!

Timilique! disse...

Oi,Carlota. Que bom que gostou. Na etimologia, "amador" é o que faz as coisas por amor.
É isso. Sou amadora.
Grande abraço.
Helena

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