HÁ ALGUM tempo, uma charge nesta Folha desenhava o horror de uma pessoa que, coberta de sangue, comia um pedaço de carne num restaurante. O garçom, coitado, envergonhado, dizia ao consumidor da carne algo como: "Aqui não é permitido comer carne". Os vizinhos de mesa, todos com suas alfaces no prato, olhavam estarrecidos para o prato e a mesa do sanguinário homem.
A cor vermelha de sangue, no guardanapo amarrado no pescoço da figura animalesca do carnívoro, traía sua insensibilidade para com o sofrimento da picanha em meio à batata frita. Algum tempo depois, por conta do debate acerca da forma fascista que assumiu, entre nós, a lei contra o tabaco em locais públicos, eu dizia nesta coluna que em breve essas pessoas "conscientes" (tenho desenvolvido um horror todo peculiar por pessoas "conscientes") iriam perseguir os carnívoros.
Muitos leitores, revoltados com minha retórica abusiva, me acusaram de exagerar e contaminar um problema de saúde pública, cientificamente comprovado, com absurdos do tipo "fechamento compulsório de churrascarias". E quando provarem que "carnívoro" é problema de saúde pública? Já vem por ai a "segunda-feira contra os carnívoros".
"Waaal", diria o sábio Paulo Francis. O mundo sempre se torna óbvio quando você aposta na imbecilidade disfarçada de bem comum. Pense o pior e torne-se profeta. Agora, chegamos na hora de debater os direitos dos frangos, porcos e bois. Chegaremos aos piolhos? O debate se dá em duas vertentes, como bem dizia esta Folha alguns dias atrás, por conta da visitação da "Santa Alimentação" aos frigoríficos brasileiros.
Os europeus, esses cidadãos tão evoluídos e preocupados com um mundo melhor, exigem de nós frigoríficos "humanistas".
Mas quais são as duas vertentes do debate acerca do humanismo animal? De um lado do ringue os moderados, ONGs a favor do abate sem sofrimento, com formas confortáveis de transporte e abate (resumido na máxima "Por uma carne ética!"), e do outro lado, os seguidores radicais do filósofo Peter Singer, um utilitarista radical. Como todo utilitarista, ele identifica o "bem" com a minimização do sofrimento.
"Uma ética de merceeiro inglês", dizia Marx. Esses "radicais", parceiros de Singer, se autodenominam "abolicionistas" contra o "especismo". O que é "especismo"? É uma forma de racismo contra os animais. Especista é quem acha que os seres humanos têm mais direitos do que, digamos, camundongos, porcos e baratas. E os piolhos?
Vamos concordar que torturar animais é feio, apesar de que grande parte da vida esteja sustentada na necessidade da tortura de alguns seres para que outros continuem a respirar. Também vejo nos olhos dos meus cachorros a docilidade de quem veio a mundo para sofrer, aliás como todos nós, vítimas do nascimento. Mas ainda aprecio suculentas picanhas. O que fazer, eu sou incoerente mesmo, amo meus cachorros, mas sou indiferente aos pobres bezerrinhos.
Imagino que essas pessoas "conscientes" em breve proporão tratamentos de choque para pessoas degeneradas como eu. Tombarei gritando pelo direito às churrascarias. Por que essas pessoas "conscientes" não falam dos direitos das rúculas em continuarem, de forma singela, a fazer fotossíntese? Onde está a consciência deles quando torturam seres inocentes como as berinjelas, trituradas entre nossos dentes horrorosos?
Não há dúvida de que há algo de monstruoso na humanidade, mas o que me espanta nesses "conscientes" é a cegueira para o fato de que a natureza não seja um mar dócil, mas sim um espaço de violência. A humanidade tem algo de monstruoso porque ela é parte da natureza. Se dependêssemos desses "conscientes", não teríamos sobrevivido à seleção natural. Teríamos caído paralisados diante da necessidade de matar para sobreviver, por um lado, e pelo outro lado, da dor de consciência por aniquilar a esperança de pequenos antílopes que corriam livres e saltitantes pela savana africana. Até hoje, quando penso neles, choro à noite: ohh, como nós somos cruéis!
Esses caras são uns bobos que nunca viraram gente grande, por isso eles gritam por aí "rats have rights". Gente grande sabe que a felicidade não faz parte dos planos da natureza. O que escolher? A carne ética ou a rúcula santa? Um dia vão sair correndo dando pauladas em quem não se converter à "Santa Alimentação".
Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.
13.10.09
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