13.9.08

Uma fatia de torta

Não sofri fome em minha vida. FOME. Como a descrita por Nelson Rodrigues, de comer água.

Nem sei o que é carência. Apesar da verdade que me falta, entendo o que é falso.

Meu filho voltou desapontado do aniversário de um amigo.

Disse que havia sido o pior de sua vida, bem exagerado como seu pai.

Eu fui buscá-lo e meio que visualizei o drama no salão. Era uma festa-fantasia.

Não havia um só menino ou menina que acatou a sugestão de dublar um super-herói. Mas, em compensação, a maioria dos pais circulava com capuz, capa, lantejoulas, suspensórios, pinturas e brilhos.

A festa serviu mais para os adultos do que para os pequenos.

Talvez meu filho quisesse se sentir inteiro, fiel a si. Ele não precisava se fantasiar, ainda está na infância.

Os adultos é que usaram o pretexto infantil para liberar seu armário e destrancar os brinquedos da nostalgia.

Em São Sepé, eu me prontifiquei a atender numa padaria. Implorei ao dono, para susto das funcionárias. Elas me forneceram touca e avental. Aprendi a fazer expresso, preparei torradas e limpava a mesa com um paninho de álcool. Vivia o suspense do outro lado da cortina, a expectativa de quem iria chegar.

Uma senhora entrou com um menino e sentaram no balcão azul. Ela apontou para a torta de chocolate.

- Duas fatias?, perguntei.

- Uma só, ela respondeu.

Levei um generoso prato para o guri, que deixou as mãos para trás e se aproximou do pedaço com o rosto. Assim como quem não acredita. Cintilavam suas pupilas negras. Tinham uma lupa escondida nelas, que granulavam o reflexo.

Comeu esperançoso, recolhendo o fundo do leite condensado do prato. Comeu não, bebeu a torta. Quanto mais avançava, hesitava com receio de terminar sozinho.

- Vó, vó, prova?

- Não, é seu aniversário... É toda sua.

E me dei conta que ele estava comemorando oito anos e recebia de presente a torta. Seria seu único presente. Nem por isso, menos valioso. Quantas vezes, na cidade pequena, os dois passaram pela frente da padaria e reavivaram a promessa?

Chegou finalmente o dia. O banquete. A roupa limpa de missa, o guardanapo, o banco alto, o pedido.

A avó respeitava sua alegria. Debruçada de lado para os movimentos do pequeno. Podia estar com fome, mas censurava o avanço.

Não solicitaram nenhum refrigerante ou suco. O brigadeiro descia a seco pela garganta, completando os dentes de leite.

Não ousaria pagar a fatia ou oferecer o doce. Seria arrancar da mulher o direito da dádiva. Banalizar sua oferta. Restava permanecer como espectador, sem me incluir entre eles, apesar do desejo de nascer naquele instante.

Não perguntei se ele gostaria de repetir. Tampouco demonstrou contrariedade com o fim, apenas girou o corpo para a rua à espera do próximo ano. Segurou o pulso da avó como quem ajusta a manga da camisa. E me partiram por dentro.

Os melhores aniversários são os mais singelos, desesperadamente necessários. O que ninguém nota que está acontecendo, além de nós.

E que não será esquecido pelo sacrifício que um fez pelo outro.

arte de Portinari


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