No Rio Grande do Sul usa-se dizer da expressão que as pessoas fazem, diante de uma situação grave, cujas conseqüências para si devem ser mantidas ocultas, que são caras de guri cagado. Quem é mãe ou pai sabe do que estou falando. O guri cagado fica quieto, disfarça, mas não consegue esconder um quê de apreensão revelador. Não demora muito, um cheirinho característico confirma o que a mãe ou o pai já intuíam.
Não raro, escuta-se dos adultos, na seqüência, o comentário "tava muito quieta a criatura". Mas o que quero dizer? Que, de repente, dei-me conta de que estamos todos com caras de guri cagado, diante de uma crise gigantesca. Prestem atenção e vão concordar comigo.
Nas reuniões, nos almoços, nos coquetéis, nos eventos, todos agem como se, pelo menos para si e para seus negócios, a crise pouco ou nada significasse e esteja tudo como dantes no quartel de Abrantes. Afinal, não poderia ser diferente: foram todos sempre tão precavidos, organizados, inteligentes, espertos, criativos e estratégicos em suas gestões, que não faria sentido sentir-se inseguro agora. Todos perfeitos. Com toda essa "blindagem", proporcionada pelo talento para uma governança impecável, não escondem, no entanto, a cara de guris cagados.
É a única coisa que não conseguem esconder. Basta que nos fixemos em seus olhos, enquanto nossos executivos ouvem as conversas uns dos outros ou fazem seus comentários sobre o que acabaram de ouvir. É recorrente ilustrarem seus pareceres sobre a crise com problemas dos outros, reais ou potenciais, sobre o quanto os outros estão demitindo, sobre os recuos nos projetos dos clientes dos outros, sobre a crise de liquidez dos outros, sobre a perda de faturamento dos outros...
É recorrente, também, darem verdadeiras aulas sobre as razões da crise e, ainda, justificarem o porque da crise ter limites e discorrerem sobre as providências necessárias a serem tomadas pelos governos para que ela seja superada. Tudo isso com um tanto de soberba e empáfia. Mas, aos observadores mais sensíveis, revelam-se, ainda que sob o manto da soberba e da empáfia, as notórias caras de guri cagado.
É fatal a cara de guri cagado, sobretudo nos intervalos entre uma frase e outra. Provavelmente, porque, de fato, cagados estão. Ou, sendo mais justo, estamos todos. Claro que estamos. E com toda a razão. Como anteviu, há muitos anos, pelas ruas do bairro periférico do Telégrafo sem fio, em Belém do Pará, um louco, de apelido Zé Lobão que, sistematicamente, depois de enfiar o dedo no ânus e cheirar, gritava: "cagaram no mundo! Cagaram no mundo!"
Vivesse hoje Zé Lobão seria festejado por essa sua assertiva de precisão cirúrgica, diante dos fatos. É ela mais dotada de sabedoria, sem dúvida, do que muitas das impressões emitidas pelos consultores econômicos, pagos a peso de ouro por nosso empresariado.
Afinal, toda essa crise, a bem dizer, não é outra coisa senão o mercado cheirando o seu próprio dedo depois de experimentá-lo no orifício anal. Pois foi refletindo sobre a máxima do filósofo paraense Zé Lobão que me ocorreu uma outra conseqüência da crise e que, de fato, pode ser ainda mais grave: alguma coisa no padrão "aproveitar a gripe e parar de fumar", não sei se me entendem.
São muitas as questões mal resolvidas nas inter-relações entre os diversos atores do mercado e esta crise, certamente, poderá ser usada como desculpa para iniciativas unilaterais que levem à transfigurações sérias na formatação do negócio como é hoje. Na varrição dos entulhos dos desmoronamentos, provocados pelos abalos na economia, poderemos perder muita coisa de valor. Mas essa possibilidade ainda não é tudo: antes das eventuais perdas na varrição, há, ainda, o risco dos saqueadores, sempre ávidos em valer-se das tragédias e das grandes comoções para, friamente, aproveitar-se e tirar vantagem da desgraça alheia.
Não sei se, diante de possibilidades tão tenebrosas, será de alguma valia insistirmos nessa cara de guri cagado, tentando aparentarmo-nos imunes àquilo que afeta os reles mortais. Seria de bom alvitre, diante das perdas de tantos anéis, que parássemos de fingir que ela não ocorre, e tratássemos de nos juntarmos na salvaguarda dos dedos.
Stalimir Vieira, no Propaganda & Marketing.
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27.10.08
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