22.10.08

O exílio

OLHANDO do alto, parece uma mancha sobre a paisagem. Mais de perto, corpos se formam diante dos olhos e se distinguem da paisagem indiscriminada. O cenário é plano, revelando a costa não muito distante. A costa africana.

Os corpos parecem ser de algumas poucas pessoas. Elas caminham juntas, ainda que em ritmos distintos e aparentemente perseguindo alvos diferentes. Chegando mais perto, alguns sons podem ser ouvidos. Irreconhecíveis para um ouvido plenamente humano. Os corpos se cobrem de farrapos. São de alturas variadas, homens e mulheres, diria um observador menos atento. Ao olhar mais cuidadoso, esses corpos permanecem de homens e mulheres, mas se revelam habitantes de um mundo há muito esquecido, milhares de anos atrás.

Corpos cansados, ligeiramente pendidos para frente pelo peso da sobrevivência cotidiana sem muito descanso. Os rostos, sem muita expressão, parecem carregar uma tensão contínua misturada a um cansaço antigo.

Aproximando-nos, fecha-se um close no primeiro rosto. Um homem parece vasculhar o mundo em busca de outras formas como eles. Busca sem sucesso. A personagem invisível que os acompanha é a solidão assustada de toda espécie que se sente caçada.

Essa é a marca essencial de todos aqueles corpos pendidos e aqueles rostos torturados: o semblante de uma espécie caçada. A caça tem um olhar que lhe é típico: a impossibilidade do repouso, a consciência contínua da ameaça, o sentimento de que predadores podem surgir por detrás das pedras que os circundam, a sensação de morte em toda parte. Sua morte. Segundo o que nos dizem os especialistas no sangrento passado dos animais, quando uma espécie se encontra sob forte pressão adaptativa, os poucos sobreviventes que restam estão no foco de uma grande violência por parte da seleção natural. Corpos eleitos para o sofrimento.

É como se os olhos injetados de sangue do "criador cruel" estivessem pousados sobre esses infelizes. Uma velha grita como que a ver fantasmas. Ela põe as mãos nos ouvidos para não ouvir as vozes dos membros do bando que já estão mortos. Em sua memória essas vozes se misturam aos sons à sua volta. A experiência da memória se confunde com o mundo ao seu redor e nossa anciã inicia a longa caminhada em direção à realidade apartada do delírio.

Uma criança estende a mão, sem olhar para onde. Uma menina maior pega sua mão sem olhar para a criança. Caminham juntas como duas sonâmbulas. A criança pega um verme que se arrasta pela areia e come. Um velho geme e cai, enquanto a menina e a criança pisam sobre sua cabeça sem perceber. À medida que o grupo avança, ele os perde de vista. Ele desiste.

De repente, um predador salta sobre o corpo do ancião. Os demais membros correm e se encolhem à distância enquanto, em meio aos gritos, o homem tem seu braço arrancado. Enquanto o animal se alimenta, ele assiste, imóvel, pressentindo o inevitável. Os olhos paralisados. Tenta, mas não consegue se mexer. Um outro predador surge e investe sobre sua cabeça, arrancando-a. Finalmente, descansa entre os dentes dos predadores.

O homem que parece liderar o bando dá uma volta e se dirige para uma mulher em pânico que se põe a correr para ele. Ela carrega uma enorme barriga. O rosto se contorce em dores. A quase-mulher, ainda jovem, chora de dor. Cai de joelhos e toca o chão com o rosto, dobrando-se como em adoração. O grupo se aproxima hesitante. Ela se levanta com dificuldade e continua a andar. Quando, finalmente a noite começa a cair, todos se jogam ao chão cansados. Durante a noite, o espaço se enche de sons. Gritos de longe indicam a presença de animais em movimento. A criança abraça forte a menina e pega no sono. Sonhando, ela vê imagens de uma mulher sorrindo que corre em sua direção.

A mulher grávida se mexe. Busca uma posição mais confortável. De repente, se contorce de novo em dores que dobram seu corpo. Não há nada a fazer, a não ser esperar que passem as dores. O homem, a mulher, a velha e a menina, em silêncio, menos a criança que dorme e sonha, se entreolham. Estão ali, sobre o olhar atento do "deus infeliz" que os contempla.

A vigília marca a duração da longa noite. Permanecem ali, olhando um para o outro, todos olhando para o alto. Percebem pequenos pontos que brilham na escuridão do exílio. Essa cena pede silêncio e respeito. Contemplemos por um instante nossos patriarcas.

Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.

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