8.11.08

Andréia dois

DE NOVO Andréia. O dia anterior tinha sido de fortes emoções. A conversa com seu chefe, a ligação de seu noivo (e a estranha desatenção que sentiu por ele), as batidas violentas do coração, o medo da saia talvez excessivamente curta, enfim, o suor à noite sozinha na cama. O medo de se perder "na saia excessivamente curta" foi o estopim do pesadelo que tivera. No sonho, deitada em um caixão, morta, ouvia as palavras duras das pessoas: "Imagine, a Andréia, fazer uma coisa dessas...". Como não se sentir uma mulher vulgar tendo tais desejos? O medo de ser apenas comum é uma descoberta que marca o amadurecimento de todo mundo que respira.

Acordou num susto. Ainda olhando para o teto, Andréia foi tomada por um sentimento horrível de culpa. Mas passou, graças a Deus.

Na noite anterior, nada em seu coração parecia indicar medo. Hoje, ela se afogava em temor. Qual seria a razão? Como suportar tamanha variação de humor?

Era uma mulher inteligente, e difícil de ser enganada. Ela não corria riscos como se fosse uma menina banal mergulhada em delírios românticos. Às vezes era assaltada pela sensação de que tinha projetos demais e que talvez não quisesse ser tão forte assim para realizá-los. Mas sua geração era condenada à força como forma de vida. Isso era ser livre. Passava os 25 anos. Dizia pra si mesma: "Ainda tem muito tempo...".

Olha o relógio e vê que acordou cedo demais. "Vou ler", pensa. Vai até a estante do pai e pega o livro "Para Além de Bem e Mal" do Nietzsche. A decisão de ler esse livro, muito famoso, veio da sensação que sentira no dia anterior quando conversava com seu chefe. E o que viria a ser "estar além do Bem e do Mal"?

Engana-se quem pensa que isso seja uma fórmula filosófica complexa. Estar além do Bem e do Mal para nossa assustada Andréia era o seguinte: caminhar pelo centro velho de Praga de mãos dadas com seu chefe. Por exemplo, visitar a casa do Kafka, o velho cemitério judeu medieval, sentar-se num café, tomar um vinho e juntos sentir frio.

Às vezes a diferença entre o Bem e o Mal é apenas o número de taças de vinho, às vezes os números de horas entre as taças. Simples assim. Afinal, onde estariam seus princípios? Em lugar nenhum. Seria sua ética apenas a distância entre o instinto, o álcool e a culpa?

Será que a grana dele a seduzia? Não, isso seria muito humilhante, alguma beleza deveria haver nele. Havia uma leveza no modo daquele homem tratar a vida. A indiferença mesma com a qual ele parecia lidar com o mundo, era o que a atraia. Agarrou-se a esta palavra: "indiferença". Largou o livro. Tropeçou. Comeu além do normal. De pé, contemplava suas roupas: "Hoje vou vestida de freira". Decidiu que ligaria para seu noivo ainda no caminho. Onde estaria o celular?
Descendo a Rebouças, Andréia sentia que o mundo estava rápido demais para as 8 da manhã. Toca o telefone, atende, era o noivo. Ele ligara antes, afinal. Sua prontidão a irritava. Estaria ela, de algum modo, apaixonada pela indiferença?

Conversa de amenidades, amaldiçoa o trânsito. Marca um encontro à noite. Desliga. Três ou quatro frases que qualquer um poderia ter falado, uma conversa absolutamente impessoal. Talvez até o almoço voltasse a sentir alguma culpa, e aí estaria salva.

Pensa naquele noivo carinhoso e atencioso. "Algo falta nele", pensa. O que pode faltar num homem carinhoso e atencioso? Por um instante, quase esqueceu do seu rosto. "Há algo de errado comigo!"

Entra no estacionamento da agência. Percebe, com um salto do coração, que o impossível acontecera. Chegaram juntos, ela e o indiferente. Por um instante ela pensa em fingir que procurava algo para não ter que suportar 13 andares juntos no elevador. Entre aquele indiferente e a prontidão do noivo, só uma louca ficaria com o primeiro.

Seria Andréia agente de seu pequeno destino? O chefe a vê e vem até ela. "Bom dia, Andréia." Ela desce do carro. Entram juntos no elevador. Procura algo para dizer. Deseja ardorosamente que outras pessoas entrem no elevador. Atravessam os andares em silêncio e sozinhos. Na altura do 6º andar, percebe um livro na mão dele.

"Já leu?", pergunta o indiferente, mostrando a capa. Lia-se em letras vermelhas "O Anticristo" de F. Nietzsche. "Não!" Definitivamente, a vida tomara a dianteira: ela estava à deriva novamente. De repente, a revelação no espelho do elevador! Ela estava com calça muito justa.

Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.

Leia +

Nenhum comentário:

Blog Widget by LinkWithin