15.11.08

Carta para mana amada

Não nascemos da mesma mãe, não nascemos do mesmo pai, nascemos do mesmo livro. Deus devia estar lendo a mesma página quando nos imaginou.

Você é a página da esquerda e eu sou da direita. Você me antecede. Só faço sentido depois de sua leitura. Só tenho significado porque você me segurou nos momentos mais difíceis, acalmando a minha ansiedade, dando cama para meu medo, cavando espaço entre as letras para que sentasse.

Quando alguém não me entende, volta atrás e lê sua página e você me explica. Sempre me explicou. Sempre teve paciência para abrir minhas metáforas.

Talvez você saiba, que a esta hora todos os homens estão cortando cebolas. Todos. Seu marido, seu pai lá no céu, seus amigos, seus alunos, seus leitores. Eu corto cebolas enquanto escrevo aqui. Primeiro descascando, depois dividindo ao meio, depois talhando ao comprido, depois passando a faca rente aos dedos, perigosamente rente, para conseguir os pedacinhos cúbicos, miúdos e parelhos.

Levarei comida até sua boca. Levarei a comida temperada de meus olhos. Vou abraçá-la como se nunca fosse terminar de desenhar o seu corpo.

Não sei quando nos conhecemos porque quando amamos toda a nossa vida quer participar do primeiro encontro. Meu esquecimento da nossa origem é excesso de memória. Não, é excesso de desejo. O desejo é tanto que não há como interrompê-lo de lembrar.

Há alguns que pensam rápido demais e não conseguem falar. Eu a amo rápido demais e não consigo lembrar.

Você me ensinou a gentileza dentro do livro e o palavrão para protegê-lo.

Como adoro quando escreve: "O céu dela, no entanto, céu sobrevivido, firmamento escuro e manso, esse que antes era espaço sem astro algum, agora tinha a renda de constelações. Estrelas escandalosamente brilhantes".

Como adoro quando grita fora da obra: "Puta Merda".

Chego à conclusão de que unicamente merece o palavrão quem cuida da linguagem. Seu desaforo não é falta de educação, mas amizade pura, mostrando que a vida não tem prefácio para nos explicar.

Não esperávamos o câncer em sua garganta. Queria costurar sua nudez na minha com linha de aço, como uma das cinco marias. Para que não sofresse mais do que eu.

Mas vem sofrendo em segredo, tímida, isso me desespera, sofro a prevendo sofrer mais do que se fosse castigado em minha carne. A quimioterapia, a pressão alta, os remédios que não permitem entender os próprios pesadelos.

Talvez você saiba, é importante que saiba, que a esta hora todos os homens estão cortando cebolas.

Não se preocupa com a beleza, com sua fragilidade, os cabelos depois voltam, depois pintaremos novamente de vermelho, roxo, amarelo, rivalizando com a chuva de sopro dos jacarandás e ipês floridos sobre as praças de Porto Alegre.

Voltará a usar sua coleção de quimonos, que compramos no bairro Liberdade, em São Paulo. Ainda fará mais uma reforma em sua casa, para atravessar a quadra pelo pátio. Ainda me dirá para diminuir o ritmo. Ainda atravessaremos o último do ano com lentilha e tapas de vidro dos cálices. Ainda minha conta de telefone registrará seu número como um de meus prediletos. Ainda ficarei na fila de várias e várias sessões de autógrafos em que se gaba de manusear a caneta-tinteiro. Ainda será patrona da feira do livro. Ainda ainda ainda seremos uma risada mais serena, mais prevenida, mais larga, amanhã, com o sol separando os dentes.

O câncer tampouco esperava sua resistência. Não conhece com quem se meteu. Não é estreante na dor. Todo texto a preparou para enfrentá-lo. Ele é o começo de outra história. Mais um personagem a se despedir para fortalecê-la.

Aperta o livro contra os seios. Isso vai passar.

Sua literatura me curou e vai lhe curar, eu prometo, assino um suspiro em sua boca. Para substituir o gemido que nunca combinou com seu rosto.

Eu te amo, mana.

Aí, sempre.

Fabrício Carpinejar, no blog Fim da Linha.
foto: Ana Nejar

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2 comentários:

Shaiala Marques disse...

Bem Porto-alegrense! Delicado, simples, sincero, cheio de frases complicadas que podem passar despercebidas ao leitor mas cheias de amor para quem se detém a observar!

fjunior disse...

disse tudo, todos os homens estão cortando cebola.

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