29.11.08

Na caverna

TENHO DELÍRIOS góticos, um pouco como o escritor Lovecraft. Será que existem dois mundos? Num mais profundo, um magma de seres viscosos flui no escuro de cavernas subterrâneas. Na superfície vivemos ao sabor das crenças e das técnicas, muitas delas feitas da mesma matéria do vento que passa.

Na superfície encontramos romanos vendo sua cidade como eterna, cristãos esperando o fim do mundo, lendo-o nos sinais dos tempos. Modernos supondo que carros, sexo livre, votos e o Mastercard criaram um mundo sem aquele magma viscoso e escuro. Vejamos.

Lembra-se, caro leitor, quando um cartunista foi objeto de protestos por parte de fanáticos religiosos (no caso, os muçulmanos) por ter desenhado figuras engraçadas do Maomé? Ou quando Salman Rushdie foi "condenado à morte", por conta de um livro sobre o Alcorão ("Os Versos Satânicos")?

Em momentos como esses, é comum se defender a liberdade. Lembro-me de mim mesmo dizendo: "Esses religiosos são um saco!". Acusar fanáticos religiosos de loucos é fácil pra quem come o que quer, se veste como quer, faz sexo com quem quer.

Não consigo evitar sentir uma certa hipocrisia nessas manifestações tão indignadas em favor da liberdade. Mas a hipocrisia é um ser viscoso que habita as cavernas escuras. Convido o leitor a entrar nessas cavernas comigo. Cuidado! O chão escorrega e vemos vultos com nossos rostos nessas cavernas.

Na semana passada eu escrevi, entre outras coisas, sobre a tendência que temos em não percebermos quando somos nós os preconceituosos (no caso, o preconceito comum contra os EUA que circula nos jantares inteligente por aí). Preconceitos também são viscosos.
Hoje, gostaria de refletir junto com o caro leitor sobre outras hipocrisias. Por exemplo: defenderíamos a liberdade caso fossem nossos os ídolos agredidos?

A hipocrisia é uma coisa que me fascina. Ela é necessária no cotidiano civilizado (o cotidiano também é viscoso), como todos os pecados o são. Mas acho belo o pecador que sabe que é pecador.

Ouvi dizer que fanáticos urraram porque pintaram mulheres nuas onde não deviam. Os defensores da liberdade se revoltaram. Pessoalmente penso que não devemos pintar mulheres peladas em igrejas ou coisas assim, mas mulheres nuas normalmente é coisa bonita de se ver e gosto de vê-las pintadas por aí.

Imagine, caro leitor e cara leitora, se alguém fizesse uma camiseta com a figura do Che Guevara espancando uma negra que gritasse "I love New York"? Penso que a moçada do "Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás" endureceria e perderia a ternura.

Será que alguém se disporia a "provar" que o Che jamais faria uma coisa dessas? Ou que ele foi um revolucionário light que não matou ninguém (muito menos negras)? Imagine se a charge viesse acompanhada de um texto falado por ele assim: "Ou você me dá ou te mato, sua vadia capitalista!".

Já que estamos no ramo das infâmias (que também são viscosas), vamos adiante. Peço ao leitor paciência. As vítimas de infâmias são muito maiores do que as infâmias.

Dizem por aí que Marx não pagava contas e deixou sua família morrer de fome, muitas vezes, porque se preocupava mais com a revolução e "O Capital". Um pouco naquela linha de quem "ama a humanidade, mas detesta seu semelhante".

Imagine uma charge em que aparecesse Marx sentado numa mesa com taças de vinho e pratos chiques transbordando comida. Imagine agora que ele está dando uma gargalhada e dizendo: "Ainda bem que existem otários que pagam minha conta, como o burguês do meu sogro!". Será que haveria protestos? Afinal, errar é humano, e o pobre Marx talvez tenha pensado algo assim uma ou duas vezes, não?

Vamos adiante. Dizem por aí que Foucault era muito vaidoso e que se vestia muito bem. Normalmente isso é comum entre intelectuais. Mas, afinal, vaidosos somos todos nós. A técnica é mostrar que mesmo sendo os melhores, somos modestos. Podemos fingir modéstia pela vaidade de fingirmos que somos iguais aos outros. A vaidade é viscosa.

Imaginem que um desses cartunistas espírito de porco resolvesse pintar uma charge do Foucault, com sua careca e óculos inconfundíveis, numa Giorgio Armani. Agora imagine que ele, se olhando num espelho, com as mãos suspensas em êxtase, e com um sorriso de rainha-mãe, dissesse: "Espelho, espelho meu, existe algum filósofo mais lindo do que eu?". Quem for fanático que atire a primeira pedra.

Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.

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