Desde primeiro de janeiro de 2009, a língua portuguesa escrita oficial ficou mais feia. Perdemos a elegância do trema, do acento circunflexo e muito do hífen. Como bem lembrou um amigo, fomos afastados de um certo charme do francês e empurrados para uma linguagem, digamos, mais operacional, mais fácil. Coisa de tempos de crises. Financeira e intelectual.
Tremas, circunflexos e todos os hífens representavam um certo luxo a que a pobreza da comunicação dos novos tempos já não comportava. Não me vou deter às exceções a que os lingüistas estão tratando nos canais de comunicação. O que me importa é o conceito, é o espírito da coisa. A quem, enfim, incomodavam o trema, o circunflexo e os tantos hífens? A quem interessava eliminá-los, senão aos preguiçosos, aos desinteressados da língua, aos práticos da comunicação quase inter-símios?
Que veredicto perdesse o c, vá lá, que isso remete às calendas, mas por que diabos perseguir acentos? Ainda mais sabendo-se que pronuncia-se a junção do g com o u de lingüiça diferentemente da pronúncia em aguerrido? Quer dizer que agora há que se supor coisas no pronunciar? Como numa estrada sem placas sinalizadoras teríamos que supor cruzamentos, travessias de pedestres ou limites de velocidade? E os casos em que se vai usar, corretamente, duas formas distintas, como em carbo-hidrato e carboidrato? E o diabo do ab-rupto para referir-se a um, até 31 de dezembro, pacífico e amigável abrupto?
Menos mal que respeitaram o reco-reco. Só me faltava ter de escrever recorreco, sem direito à recorrer. Por outro lado mantiveram o hífen em para-lama (sem o acento que caía perfeito em pára) e dizem-nos desnecessário em paraquedas... C’os diabos! Confesso que não estou confortável com as intervenções deste “acordo” (acordo, aliás, de quem com quem?; como brasileiro, alfabetizado em português, gostaria de ter sido consultado).
Quando leio linguiça me acomete a mesma náusea que em pobrema, me desculpem. Não sei qual a necessidade de alinharem-se os diversos “portugueses” do mundo. Deixe-se cada povo com seu modo de escrever: estávamos, por acaso, a desentendermo-nos, brasileiros, portugueses, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos (ou serão caboverdianos?) e, sabe-se lá quem mais, por conta de tremas, circunflexos e hífens? Bobagem. Puro auto-erotismo acadêmico.
Não morri nem deixei de ler (e gostar) de “Ensaio sobre a cegueira” por conta de uma “passadeira de peões” me jogada à fuça na primeira linha do livro. Que bom que, em Portugal, pedestres são peões, enquanto que, no Brasil, peões são operários da construção civil. Sabe-se lá o que serão peões em São Tomé. Só falta quererem que também acordemos sobre isso.
Estarão os espanhóis de Espanha preocupados com o espanhol de Honduras? E o que dirão, então, do “dialeto” argentino? E os franceses de França com o francês que se escreve nas Ilhas Maurício? Estive em Moçambique. A língua oficial é o português, mas e daí? É outro povo, outra cultura, são mais muçulmanos que cristãos; não são “atlânticos”, são “índicos”; entremeiam-se melhor com indianos, paquistaneses e chineses que conosco e os portugueses...
Que cada um escreva em português como lhe aprouver. Até hoje foi assim e muito nos entendemos. Esse acordo, quero crer, conseguiu piorar o português de todos, não apenas o nosso. Duvido que um José Saramago ou um Mia Couto se disponham a “reaprender” a escrever em português, por conta do “acordo”. Provavelmente, achem bonito escrever adoptar e lhes custe muito “matar” esse p, só porque decidiram sacrificá-lo os acadêmicos portugueses, ao “negociar” com os acadêmicos brasileiros, os tremas e hífens. Do mesmo modo, se tentarem me obrigar a aceitar “linguiça”, aí a coisa enguiça. Ia tudo tão bem – as ideias sem acento dos portugueses em nada chocavam com as nossas idéias acentuadas. Tanto que Saramago proibiu que abrasileirassem seus romances e nem demos por isso: foram todos um sucesso por aqui.
Engolimos, inclusive, uma telefónica (assim acentuada, em português de Portugal), contra a qual nos debatemos quando os espanhóis da Telefónica a impuseram-nos. Não sei como o propmark vai lidar com o assunto, se nossa revisora recebeu carta branca para obrigar-nos ao “acordo”. Mas eu me rebelo! Linguiça nunca! Linguiça jamais! Linguiça nem morto! Proponho, desde já, uma campanha contra a “linguiça”. Patrocinada pela Sadia, a lingüiça com trema. Lingüiça é Sadia. O resto é linguiça.
Stalimir Vieira, no Propaganda & Marketing.
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19.1.09
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