24.1.09

O centro do céu

Levei uma bolsa de couro com livros para degustar na praia. Quinze volumes de poesia, biografia, ensaio, romance. Livros bons, que ansiava devorar. Escolhidos a dedo, com a lascívia da véspera.

Quantos li? Nenhum, nem toquei em suas lombadas. Em outros veraneios, seriam todos. E ainda compraria alguns na farmácia e tabacaria, sem nenhuma empatia, para treinar os pés das pupilas. Eu sou um homem que depende da leitura para respirar. Preciso de uma Bíblia na gaveta para me sentir vivo. Palavras cruzadas. Gibis.

Depois da separação, não consigo ler. Uma atividade tão natural e simples, biológica no meu caso, que escreve resenhas para jornal e gosta de olhar ao horizonte digerindo uma frase de efeito, que aponta os lápis como um cozinheiro limpa e afia seu faqueiro.

Não consigo ler há um largo tempo. São semanas de jejum. Já me vejo como um leitor desempregado. Um ex-leitor. Dói virar a página. Todo parágrafo elegantemente escrito me machuca. Toda palavra penteada me provoca arrepios, pelo contraste com a minha dor descabelada. A sobriedade das vozes acentua a minha cara de resssaca. Misturei sentimentos como quem mistura bebidas na noite anterior.

Uma nova obra pede irmãos. Recordarei dos livros que abandonei em minha biblioteca. Não poderei consultá-los. Uma citação vai exigir que procure um autor localizado na segunda prateleira, terceiro degrau, à direita, de uma casa que não possuo mais a chave.

Voltei a ser uma criança que soletra. Com a custosa dificuldade de superar as manchas de tinta e subir a escada das linhas. Uma página que pede a seguinte não tem sentido. Qualquer seqüência me abala. O contexto não explica as palavras.

Não tenho mais a segunda-feira, depois a terça, depois a quarta, depois a quinta, a sexta e o final de semana. A mortalidade anda pelo avesso. As páginas não evoluem em sua numeração, regridem, saltam. O corpo não nada, bóia. Com o rosto para cima, impossibilitado de acompanhar o sol cair e se levantar. Não usufruo de ângulo do nascente e crepúsculo. Observo apenas o centro do dia, o centro do céu. Encaro o sol mais forte, a luz cega.

Não agüento o formigamento dos braços, já é infarto. Parar um instante num travesseiro ou numa poltrona é perigoso. Facilitaria a perseguição do passado - ele já está perto, alcançando os ombros. Evito me deixar sozinho. Ler é recuar. Escrevo fingindo que avanço.

Dispensava tardes concentrado num pensamento, hoje sequer atravesso uma vírgula. Um ponto de interrogação tem arames. Não passo para o outro lado. Com distração ansiosa, dispersivo, não leio por enquanto.

Fixar os olhos para um lugar é chorar.

Fabrício Carpinejar
arte: Monet

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Um comentário:

Lília Abreu disse...

Bonito texto, a contradizer todo um bloqueio...
Que dizer? tudo é transitório, tudo...
Um abraço intemporal

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