Um das formas do egoísmo está em olhar para si de modo distorcido, se contemplar aprisionado no espelho da água e ali permanecer paralisado qual Narciso. Nosso reflexo deve ser bebido na concha das mãos; a água deve nos levar adiante, não nos paralisar.
Ninguém deve sacrificar a contemplação e a vida interior e ninguém deve sacrificar ninguém por nenhuma dessas coisas. Quando o poeta verte sua intuição em metáfora ele bebe da água e avança alguns passos, ele grava sua mitologia na pedra e liberta seus monstros em praça pública. Narciso não pode escrever poemas.
É uma figura inarredavelmente pública, o poeta. Drummond é um homem mais público que Vargas. Em um poema de Carlos é possível divisar uma sua lágrima e quiçá um pedaço de sua orelha: ele está todo ali, público como uma lua cheia.
Só depois de constatar que seu coração era “maior que o mundo”, depois de se ver trepidando na água do rio, o poeta pôde dar um passo adiante e desdizer-se: “Não, meu coração não é maior que o mundo / É muito menor. / Nele não cabem nem as minhas dores. / Por isso gosto tanto de me contar. / Por isso me dispo. / Por isso me grito. / Por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias. / Preciso de todos.”
Olhando pra si o poeta acaba por descobrir o outro, o rosto que não é dele e que o afronta: “Sim, meu coração é muito pequeno. / Só agora vejo que nele não cabem os homens. / Os homens estão cá fora, estão na rua.”
Quando morre Clarice Lispector nasce um poema de Ferreira Gullar: “Enquanto te enterravam no cemitério judeu do Caju (e o clarão do seu olhar soterrado resistindo ainda) / o táxi corria comigo à borda da Lagoa na direção de Botafogo / e as pedras, e as nuvens, e as árvores / no vento / mostravam alegremente / que não dependem de nós.”
A morte, ao contrário do sonho interrompido, não extingue o universo. O poeta, acostumado à vida interior, estranha esse fato aparentemente comezinho – e o transforma em poesia. No sonho, tudo existe como extensão quase mística do nosso ser. O fim de um sonho é o fim de um universo. Mas quando Clarice morre, as pedras permanecem tão duras quanto sempre foram, e o poeta encontra aí seu próprio destino. Não é a mera presença em um velório que nos dará a consciência do “ter de morrer”; é preciso antes ter estado presente em si mesmo.
Se quero ver no outro um rosto, preciso primeiro contemplar o meu – mas não para sempre.
Alysson Amorim, no blog Amarelo fosco.
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15.3.09
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