De manhãzinha, na Praça dos Brinquedos, uma jovem costuma ser seguida por um cão manco.
Não decifrei se o animal é dela ou um adorador de seu perfume. Ele vai atrás, o pêlo negro reluzente, não ao lado, o que não me permite concluir sua ligação direta.
Mas o que posso constatar - sem conhecer patavina da história - é que um cão manco é muito mais fiel do que qualquer cão. Um cão manco é leal como Jó a Deus, como Caim a uma pedra, como Hamlet ao fantasma do pai. Atravessa o inferno com suas três patas. Sua dificuldade em andar eleva a sua escolha. O trotear mostra que não é um desejo à toa, baldio, é um desejo que vem de uma superação. Ele não segue porque simplesmente pode seguir, por curiosidade e instinto. Segue apesar da impossibilidade. Não está se mexendo naturalmente, mas revirando a boca em cada manobra. Equilibra seu corpo todo para um lado, com uma disciplina inaudita, escorando-se no vento não sei bem como.
Não me dá pena, ele me irrita. Sua distorção o humaniza. É o oposto das minhas facilidades. A contrariedade que não se entrega. Além do hálito de coberta velha, exala uma confiança de quem suportou a tragédia - um atropelamento ou uma luta entre seus iguais - e não se diminuiu. Um vira-lata antes da amputação. Depois, a ferida desenhou nele uma árvore genealógica de guerreiros.
O cão manco pára e me analisa. Não pede um afago e comida. Encara como se eu fosse uma rua desesperada. Perde comigo um tempo precioso da sua caravana. Serei seu esforço dobrado para emparelhar novamente os passos e alcançar a jovem. Aquele olhar franzino e minúsculo tem um custo. Não foi de graça. Está me desafiando. Por um instante, estamos misturados.
Homem que não tem um cão manco em si não será leal. Um homem sem dor nunca buscará uma mulher seja onde for. Um homem que não chorou envergonhado, que não se questionou e não faliu não terá nada a caminhar além do que se espera. Um homem que não percebe que as latas de tinta enferrujam e deixam marcas indeléveis nos azulejos não tem compaixão pelos ciscos. Um homem que não foi derrotado, que não assoou o nariz nas mangas da camisa, que não foi barbudo sequer um dia não seduz, aguarda em casa. Não tem pressa, não tem medo, não tem como participar da sinuosidade do pensamento feminino, que se contradiz para pedir ajuda. É imbatível, não é homem ainda. É uma espera de homem. Vai descartar amores porque não suportou seu próprio abandono.
Um homem sem um cão manco latindo em seus braços não consegue nem se acompanhar.
arte de Paula Rego
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