18.10.08

Reforma: graça e desgraça

A Reforma Protestante ocorrida na Europa Ocidental no século XVI foi um dos mais importantes capítulos da História do Cristianismo. Ela se dá dentro de uma moldura “secular” inevitável: o colapso da unidade transnacional representada pelo Sacro-Império Germânico-Romano, o nacionalismo, o surgimento dos Estados-Nacionais independentes, o declínio do feudalismo e o fortalecimento do Absolutismo monárquico, a substituição do modo de produção feudal pelo capitalismo mercantil, o surgimento da burguesia como classe fadada à hegemonia em um novo momento histórico.

Do ponto de vista religioso, havia o enfraquecimento do poder temporal do Papado, e um crescente questionamento à vida moral do clero, e a dogmas, exageros e superstições, de uma Cristandade esgotada em seu modelo, e uma cosmovisão marcada por um Cristo débil, santos fortes e anjos importantes, onde a venda de indulgência e a simonia eram apenas alguns aspectos de um modelo em crise. Por um século e meio o espírito da Pré-Reforma (especialmente Huss e Wycliffe) se espalhava por toda a Europa, notadamente nas Universidades. O palco da História estava pronto, quaisquer que fossem os seus atores, no caso, Lutero, Zwinglio, Calvino, Cranmer, Melanchton, Beza, Knox, e tantos outros.

O “espírito” da Reforma incluía a Liturgia e a Bíblia no vernáculo (com o livre acesso e exame desta), uma percepção do laicato dentro de uma concepção de um “sacerdócio universal de todos os crentes”, o lugar das Sagradas Escrituras como fonte última da revelação escrita, e regra de fé e de vida, e, mais importante: a salvação pela Graça de Deus por meio do sacrifício vicário de Cristo, recebido pela Fé.

Uma vez afirmei que o 31 de outubro de 1517 foi o dia mais importante para a História da Igreja desde o Pentecostes. Nenhum daqueles postulados centrais, que são pontos convergentes das Confissões de Fé reformadas, estão ultrapassados ou podem ser minimizados ou substituídos, antes sempre reafirmados e atualizados. Como Anglicanos, temos o Livro de Oração Comum (edições de 1552 e 1662), e, particularmente, os XXXIX Artigos de Religião como marcas da nossa fé reformada.

Por outro lado, a atitude das Igrejas Orientais diante da Reforma foi de rejeição e de distanciamento, e a Igreja de Roma, com os Concílios de Trento e do Vaticano I, encetou uma Contra-Reforma de reforço de disciplina interna e de “anátema” aos princípios reformados. Nenhum dogma foi revogado, desde então. Novos dogmas (p.ex. Imaculada Conceição e Infalibilidade Papal) foram adicionados, novas criaturas foram beatificadas e santificadas. O Concílio Vaticano II, com sua abertura de atitude, linguagem e métodos, também nada acrescentou para reduzir as diferenças doutrinárias entre Roma e a Reforma.

Ninguém pode negar o impacto civilizatório da Reforma, na alfabetização, na universalização da educação básica e profissionalizante, no avanço do Capitalismo, e na crítica a esse, no fortalecimento do Estado Democrático de Direito, na valorização da pessoa humana (particularmente a mulher), do trabalho, da cidadania.

O empreendimento missionário foi tardio, pois no século XVI se buscava apenas sobreviver, no meio das lamentáveis “guerras de religião”, além do equívoco de alguns reformadores de acharem que a Grande Comissão já havia sido cumprida pelos Apóstolos no primeiro século. A partir do século XIX, porém, os herdeiros da Reforma realizaram memoráveis empreendimentos de pregação e serviço a todos os povos.

Dentre as massas nominais e sincréticas da América Latina, o Protestantismo de linha evangélica trouxe experiências de conversão e de novidade de vida.

Por isso, nesse mês de Outubro, há razões de sobra para voltarmos ao tema da Reforma, e, mais ainda, para comemorarmos as graças da sua herança. Mesmo com tudo o que de negativo veio a ocorrer depois – e hoje – essas ações de graças devem se dar.

Não podemos, todavia, ser nem acríticos, nem triunfalistas. Reconhecemos que a ênfase na autoridade da revelação escrita e na soteriologia da graça concorreu para um descuido na eclesiologia, e para uma desvalorização da Tradição (como conjunto do consenso dos fiéis através dos séculos, como herança apostólica acorde com as Escrituras), mais no segundo (Calvinismo) e no terceiro (Anabatismo) momentos do que no primeiro (Luteranismo, Anglicanismo). O Episcopado Histórico foi substituído, em alguns setores, por novas formas (Presbiterianismo, Congregacionalismo), com instituições mais débeis para enfrentar as adversidades dos séculos seguintes.

A herança reformada foi levada de roldão na Europa Ocidental, parte da América do Norte e Oceania (Austrália e Nova Zelândia) pelas expressões teológicas Liberais, fruto do racionalismo iluminista, trazendo desolação e morte. No lugar da afirmação dos postulados da Reforma, a heresia, como negação da sã doutrina. A reação fundamentalista (inicialmente bem intencionada e válida) degenerou no sectarismo anti-intelectual, estéril, reacionário, legalista, e, algumas vezes, racista.

A fragilidade eclesiológica (o confundir “livre exame” com “livre interpretação”) descambaria para a fragmentação sem fim do denominacionalismo, dilacerando o Corpo de Cristo, em um clima cismático caótico, carnal, pecaminoso, racionalizado pela desculpa platônica da unidade “invisível” e pelo anti-institucionalismo. A negação do Episcopado Histórico, no passado, vê reaparecer hoje, o neo-episcopalismo ou o neo-apostolismo de forma selvagem e caudilhesca.

O pecado contra a Verdade: as Heresias; e o pecado contra a Unidade: os Cismas, o denominacionalismo, são as des-graças que a Reforma não pretendeu, mas concorreu, e dos quais não nos cabe orgulho, mas, antes, vergonha e convicção de pecado.

Atualizando a fé uma vez dada aos santos; atualizando a herança multissecular da Igreja de Jesus Cristo, Una, Santa, Católica e Reformada, procurando denunciar as des-graças e afirmar as graças, ousamos continuar o canto:

“Castelo Forte é o Nosso Deus,
Espada e Bom Escudo”.

Robinson Cavalcanti, bispo anglicano.

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